Arte: Isabele Linhares
Aqui
jaz Nelson Ascher consumido
pelo
amor-próprio não correspondido.
(Nelson
Ascher)
(Parte 1)
Eu
tava pensando, esses dias, numa alegoria para o meu epitáfio. Algo pra ficar
escrito na minha lápide. Sabe “alegoria”, né? Sabe “epitáfio”, né? E lápide,
sabe, né? Eu tava pensando muito profundamente. É, tudo é profundo. Até você,
que diz “ih. Lá vem papo cabeça”, é profunda. Claro que é ironia. Sou a rainha
da ironia. Tá, tá, mentira minha, cê é muito profunda mesmo. Teu: “ih. Lá vem
papo cabeça” é uma ironia e você é bem profunda mesmo. Agora cala a boca, que
eu quero te contar uma história. Sei lá, pára de perguntar se eu tenho certeza.
Eu tô só inventando. E não é isso que pensador faz? Tô tentando ser pensadora.
Haha. Sabe “pensadora”, né? Eu não sei. Haha. Não achou engraçado? Só porque eu
não disse que você é profunda? Mas eu disse. Eu disse que você é profunda. Tá
bom, desculpa pela ironia. Não! Não vai embora. Eu não sou chata, sou
pensadora, é diferente. Ouve, ouve aqui, só deixa eu terminar o que eu ia
dizer. É rapidinho. O problema é que, na hora da morte ainda tô muito jovem –
eu, meu físico - e não devo morrer, a não ser espiritualmente. E morte
espiritual implica o que? Ah! Morte espiritual implica uma coisa pra cada um.
Mas, pra resumir, pra chegar logo no meu ponto. Tá, tô resumindo, ó. É
rapidinho. Pra mim, morte espiritual também implica um monte de coisa. É, tô
resumindo. Nâo, nem é tanta coisa que eu tenho pra falar, só que você fica me
interrompendo. Olha, escuta só isso, é rapidinho, eu juro. O que eu quero que
morte implique nesta alegoria, nisso que eu tô falando, é a morte intelectual a
morte da alma. Filosófico, né? E dá pra ser complicado também. Não, pára de ser
chata. Não é nada complicado se você prestar atenção. Eu sei, é chato. Dá pra
ser chato também. Dá pra ser complicado também, ó, presta atenção que você
entende. Dá pra ser ainda mais complicado que antes, que o filosófico. Dá pra
ser mais complicado que arranjar um homem bom por aí. Não, brincadeira, não é tão
complicado. Você é esperta, é só prestar atenção que não é complicado. Vou
complicar só um pouquinho, mas, daí, como você vai prestar atenção, vai ficar
fácil, ó. Por favor, presta atenção. Juro que o chato fica legal as vezes. Juro
que eu termino rapidinho, ó: o tempo acelerado – o tempo atual, o tempo que a
gente vive, hoje em dia, atualmente - é como se a gente amadurecesse antes do
tempo. É algo tipo como se a morte chegasse ainda em vida. Entendeu? Continuo,
vou continuar, calma. Ô olha. Não terminei ainda, olha. Tô terminando. Esse
“algo tipo” já é algo. Parece abstrato, parece que “algo tipo” não existe, mas
já existe. É um algo, assim, sem muitas características, mas já é algo, sabe?
Entendeu? Ai, é que você não tá prestando atenção. Presta atenção que você
entende. Por isso que você tá solteira ainda. Não presta atenção em nada. Você
é profunda, juro. Todo mundo é profundo. Só um tolo se entedia em meio a uma
multidão. Todo mundo é profundo. Você é profunda, só não presta atenção. Olha,
presta atenção e você entende, tá? Não faz diferença você não querer ser
profunda. Não é tua escolha, não adianta achar que não é porque você é profunda
e ponto. Que nem todo mundo. Quero dizer, o “é como se” já “é”. Então não é só
“como se” a morte chegasse ainda em vida. A morte chega ainda em vida. E
isto é, de novo, uma alegoria. Sabe “alegoria”? E não é por ser alegoria que
não é real. Não,
não é surreal, é real. Não, não, é aí que ce tá
enganada: não é estranho, só é real. Não é por ser alegoria que não é verdade.
Não, não, você tá falando besteira. Nâo é bizarro, é real. Nem foi tão
complicado assim. Ce viu? Eu e você, a gente é e não é profunda. Tá, tá, eu
quase terminei, falta só mais uma coisinha que eu queria te falar antes de você
ir lá. Eu sei, papo muito cabeça e tals, mas você gosta. Você só acha que não
gosta, mas você gosta. Não, não é porque eu sou diferente. É que eu tento ser
mais profunda que você. Você tenta ser mais...mais...sei lá o que você tenta
ser mais. O que você mais tenta ser na maior parte do tempo. O que você mais
tenta ser na maior parte do tempo? Ah, deixa, depois ce me fala, que eu quero
terminar de te contar essa história antes que você vá lá. Ó, rapidinho,
terminando, só pra terminar. Daí, aconteceu que, sem pensar nisto tudo, fiz um
monte de coisa, esquecida que eu tava da morte. Tô tentando ser profunda.
Percebeu? É, isso mesmo, bem profundona. Duma textura daquelas profundas, sabe?
Ah! Eu gosto de ser profunda. É bonito ser profunda. Todo mundo gosta de gente
profunda. É, ce te razão, não em festa, né? Haha mas, ah! festa é o melhor
lugar pra gente mostrar que é profunda. Em festa, ser profunda é legal, é
atraente, é ssssexy. Porque daí você é alternativa. Você é diferente. Você é
única. Esquecida que eu tava do “hoje em dia” e do amadurecimento. Conversei,
conversei e achei que faltava leitura. Li, li, li, pisquei e tava mais que
madura. Passei a escrever, já que tinha muito a falar. Agora, passada do ponto,
depois de madura, pra onde? Calma, já tô acabando, olha só isso: a morte chega
ainda em vida. Parece que a gente apodrece, tipo fruta que põe verde na
geladeira. Nâo, não, não tô declamando nenhum poema. Tô te contando uma
história. Tá acabando, só mais esses dois versinhos, ó: parece que a gente
apodrece antes de amadurecer mesmo. Antes de ficar realmente saborosa. Antes de
ficar no ápice do nosso sabor, a gente já tá com a casca cheia de fungo. É
divertido ser chata. Ser profunda, eu sempre digo, é ter coragem de ser chata.
É charmoso, é legal, é atraente, é ssssexy. E sabe o que é mais sexy do que ser
chata E profunda? Não sabe, né? Claro que não sabe. Ce não sabe nada. Não, não
fica chateada. Tô brincando com você. Só deixa eu terminar a história. Ce não
vai embora antes de eu terminar de te contar minha história, né? É só brincadera
minha com você. Você sabe tudo, eu sei que você sabe. Você me entende. Tô vendo
no teu olho. Tô vendo neste teu olhinho aí, que você é profunda, ce sabe. Ce
sabe tudo. Então, o que é mais sssexy que ser profunda é...tchan tchan tchan
tchan: saber ouvir! Hahahaah Eu te juro. Não tem nada mais profundo que homem
que sabe ouvir. Nada mais atraente. É sssexy. Mais sexy que dançarino de axé.
Mais sexy que vocalista de banda indie. Que homem rico. Que homem engraçado ou
inteligente. Que aquela indiferença charmosa. Aquele olhar de quem tá com o sol
bem no olho. Mais sexy que falar, é ouvir. Afinal de contas, a gente tem só uma
boca, mas tem duas orelhas, né? Hahahaha é...duro. Mas, olha só isto. Deixa
ela. Deixa ela ir. Eu não quero mais conversar com ela, ela é chata. Ela não
gosta de papo cabeça, quero conversar com você. Olha pra mim. Olha pra mim.
Agora é só eu e você. Agora não tem mais ninguém em volta. Neste boteco,
estamos só eu e você, meu dançarino de axé, meu vocalista de banda indie com
composições próprias. Meu alternativo neo punk. Meu cantor de pop rock. Você.
Você, meu ser humano lindo que tenta parecer feio porque é mais ssexy. Você,
ideal de homem que usa óculos retrô. Que usa calça justa que nem no axé mas que
não gosta de axé. Você, que vai na woods pra pegar mulher mas tá procurando o
amor. Você que é charmoso, você que gosta de ouvir. Você é bom ouvinte, né? É,
claro que tua mãe te ensinou a sempre ouvir uma mulher. E ensinou muito bem,
viu? Você é menino de família então? Além de charmoso e profundo, você é bem
educado. Nossa! A mulherada deve cair em cima de você, hein? Deve fazer a
mulherada
lamber o chão. É, eu sei que é machista. Mas o mundo é
machista e as feministas são chatas. Eu sou só uma mulher. Uma mulher
conversando com um homem. Um homem como você, nossa! Olha como você olha com
indiferença pra mim, que charme! É...eu até que lamberia o teu chão também. Que
nem essa mulherada. Não tem nada mais interessante que homem charmoso, profundo
e bom ouvinte. Ainda meio indiferente, ainda, meu deus! É charmoso. É atraente.
É sssexy. Sou atraída, confesso, por homem assim. Homem que não mostra que ama.
Homem que finge que eu não sou importante pra ele. Sou atraída, confesso, por
homem assim. É como eu sempre digo. Mas sabe o que é ainda mais interessante
que homem charmoso, profundo, indiferente, bom ouvinte e educado? Homem que tem
memória! Sabia? A memória é a única coisa que faz a gente organizar as coisas
na cabeça. Falando nisso, lembra do que eu tava falando? Não lembra, né? Tudo
bem. Só fica assim, me olhando com essa indiferença charmosa. Com esse olhar
cerrado de quem tá com sol na cara. É. Essa tua sobrancelha meio arqueada como
se tivesse satirizando o Johnny Bravo, só que não sabe o que é sátira. Essa
segurança indiferente que quando sorri parece que quebra. Essa pose constante
pra foto que ninguém tá tirando. Não! Não sorri! Fica assim, sério. Sorriso
estraga você porque parece que você é vulnerável, daí. Você, charmoso assim,
não precisa ter memória. Você pode. Você pode tudo. Bom, eu não lembro também.
Mas é claro que é importante o que eu tava falando! Que pergunta! Quer saber?
Melhor ainda: sabe o que é melhor? Melhor é quando o homem além de ter memória,
sabe o que importa. Lê a mente da gente, sabe? Adivinha até o que a gente nem
sabe que queria. Aí sim. Aí é a magia. E é magia porque isso não aparece no
espelho. Quer dizer, não aparece no teu espelho. Aparece só no meu, né. Bom,
foi mal, eu até limpava teu chão. Mas você não limpou o meu direito. Nem tá me
ouvindo. Do que eu tava falando mesmo? Se bem que você não precisa me ouvir.
Não precisa ter memória, não precisa nada. Fica assim, só me olhando como se
não tivesse prestando atenção. Me olhando como se eu fosse completamente
desimportante pra você. Olhando sempre pra porta, porque pode chegar um
conhecido mais interessante. Ai! Que charme! Nossa, como você é charmoso. Adoro
ser desvalorizada. Não faz assim que eu me apaixono, hein?hahaha Ah! Tava
falando do meu epitáfio, porra! Sabe “epitáfio”, né? Da morte que acontece com
a gente vivo. Do que tá acontecendo agora, porra. Se a gente fizesse epitáfio
pra cada uma dessas mortes em vida, ia sair caro, né? Haha ah! Olha só pra
você! Você, assim, lindo, perfeito, homem, sssexy. Eu, aqui, uma mulher. Este
bar, só nós dois. Ssexy. Finge que só tá a gente aqui. Isso. Pode até olhar pra
porta, mas espera só eu terminar de falar pra sair. Olhou pra porta? Tá
olhando? Isso. Agora fica quietinho e ouve, tá? Esta morte, a morte alegórica
(sabe “alegoria”, né?) é pulsão. Tem pulsão de morte e pulsão de vida, sabe
“pulsão”, né? Claro que sabe! Um menino bonito desses não sabe o que é pulsão!
Se não soubesse o que é, pelo menos saberia fazer a cara de quem sabe, né? Daí
já é suficiente. Sorri pausado tipo capa de revista, vai. Ai que lindo, você é.
Você inunda o salão com a tua beleza e quem vai lembrar de perguntar se sabe o
que é pulsão, né? Não é verdade? Shh shh, fica quietinho. Ouve quem sabe das
coisas, isso, assim, bonito. Silencioso. Sério. Ssexy. Então. Tem pulsão de
morte e pulsão de vida. A pulsão de morte é a que busca o fim, já que o fim é a
morte, né? E a pulsão de vida tem a ver com a busca do início, começar as
coisas, entende? Então. Daí tem a pulsão. Olha, é bem poético, tá? Tô tentando
ser poética. Faz cara de quem tá fruindo o poético, faz. Faz! Ah! Faz, meu, que
que custa? Viu? sabe tudo esse garoto! Continua com essa cara, tá? Essa boca
vermelha que nem precisa de batom. Isso é a corporificação do poético! Quem
aqui precisa de poesia quando a gente vê uma boca dessas, né? Hahaha Vamo tentá
ser poético? Pulsão. Pulsão de morte. Morro toda.
Só parar de respirar. Não fosse essa dorzinha na
lombar sabe a lombar, né? Faz carinha de dorzinha na lombar, vai. Isso! Que
carinha mais linda. Fica bonito até imitando dor inexistente na lombar que não
sabe onde é. Sabe onde é a lombar, né? A parte final da coluna, aquela que dói
de tanto ficar sentado errado? Shh shh não responde. Fica assim, com essa
carinha que finge que tem dor na lombar que não conhece. Me olha sério. Assim.
Shh shh quietinho. Bonito. Lindo. Não fosse essa dorzinha na lombar...morte
certa. Nem precisava fazer nada, só ficar sentada e era morte certa. A pulsão
de vida, a vontade de começar a fazer nada geraria a pulsão de morte, a vontade
de fim. Tá chato? Tô chata? Sô chata? Achei que eu era legal. Achei que eu era
inteligente, charmosa, atraente. Achei que eu era ssexy. Pode olhar pra porta,
então, só enquanto eu termino de falar. Falastrona? Eu? Porque falastrona? Hehe
que que eu fiz? Ce só diz isso porque você não viu esse cara que acabou de
sair. Esse, sim. Um arrogante. Não tem nada mais chato que gente arrogante. É
sexy, é atraente, mas que adianta se é superficial? Acha que é perfeito,
tadinho. Daí, quando viu que eu não me desvalorizo, que eu tenho mais que um
corpinho bonito pra mostrar, ficou entediado. Quando viu que eu não sou menos
que ele, acho que ficou inseguro. Porque eu tenho algo que ele nunca tem. Eu
sou inteligente. E inteligência, meu filho, só cresce. Ele, todo lindo agora,
vai virá um bagaço daqui a alguns anos. Daí não sobra nada pra ele. Ele vai tá
lá, sofrendo porque ficou feio e eu só vou estar mais inteligente. É, é,
recalque também não envelhece, ce tem toda razão, mas como eu tava falando,
enquanto ele só tem beleza e charme e educação, eu tenho inteligência. A beleza
o charme e a educação dele vão sumir. A minha inteligência, não. É como eu
sempre digo: inteligência só cresce. E depois, eu até que sou bonita, não sou?
Quando eu me arrumo, fico bonita até. Então. Eu tenho mais beleza do que ele
tem inteligência. Daí eu tenho mais pra oferecer, sabe. Não sou superficial. Só
sô mais mulher que ele. Sou o pacote completo. Daí ele foi embora. Acho que
ficou inseguro, tadinho. A inteligência, especialmente de mulheres bonitas como
eu, ameaça os homens, né? Sou o pacote completo. Mas ainda bem que você tá
aqui, né? A gente pode trocar uma idéia verdadeira. A gente, gente assim como
nós duas, a gente é diferente dessa gente aí. Como assim “como eu sei que você
é diferente?”. Eu sei, ah, eu sei porque tô te vendo, ué. Dá pra ver, da pra
sentir quando a pessoa é diferente. A gente sabe, né? Por empatia. Dá pra ver
no olhar. Vou dar um exemplo, ó. Do que eu tava falando antes. Eu tava tentando
ser profunda, sabe? A gente não pode ser só um corpinho bonito. A gente tem que
ser profunda. A gente tem que ser atraente. A gente tem que ser ssexy. Acho que
todo mundo sempre conversa as mesmas coisas. Ninguém é profundo. Mas a gente,
pessoas como nós, não se contentam com essa mesmice, sabe. Vê só o que eu tava
falando e o babaca nem entendeu: eu tava falando que se não fosse essa
ardênciazinha no olho, a vista cansada, que mostra que eu ainda tô viva...morte
certa. Nem precisava fazer nada. Não fosse, enfim, o corpo, reclamando
existência. É como eu sempre digo: todo mundo só fala a mesma coisa. E, só um
detalhe, rapidinho: o corpo sou eu, ele me constitui, certo? Nada muito
complicado aí. Ah! Nem sei porque eu tô me preocupando, você entende como
ninguém. Vou resumir, porque você já sabe isso tudo. E pra ir mais rápido
também, vou resumir. Você também é linda e inteligente, sabe como é. Não fosse,
enfim, o corpo, reclamando existência...morte certa. E morte alegórica (lembra
“alegoria”?) não quer dizer que não é real, né? Lembra?Alegoria? Meu epitáfio?
A morte em vida? Minha lápide que é o meu corpo? Não lembra? Ah! não foi pra
você que eu falei isso.
***
(Continua...)
Nasceu em Curitiba, cidade onde reside e tece sua colcha de contos, crônicas e críticas. Aluna do Núcleo de Dramaturgia do SESC e habitante da Casa Selvática. Gosta de mistérios, barbáries, laços, óculos de armação branca e versos heptassílabos. Flâneur citadina que perambula nas fronteiras da ficção e realidade. Costuma emprestar seus olhos, corações e mentes para circunspecções sobre o teatro em www.gazetadopovo.com.br/blog/teatrofagia.
Isabele Linhares
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