Conto: Fabiano Vianna
Artes: José Marconi
“A cidade se embebe como uma esponja dessa
onda que reflui das recordações e se dilata. Mas a cidade não conta o seu
passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas
grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos
mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras.”
Italo Calvino
Estávamos eu e minha amiga Renata Beltrão justamente em frente ao túmulo
da beatificada Maria Bueno, no Cemitério
Municipal, quando ela relatou-me ter matado um cara com a mesma faca que a
santinha foi degolada.
Na hora achei totalmente inverossímil e estranho, porém depois ela me
contou em detalhes como adquiriu o artefato de um vendedor de bugigangas na Avenida
Victor Ferreira do Amaral, em frente ao Circo Vostok, em noite de espetáculo. O
sujeito jurou de pés juntos que se
tratava da mesma arma, segundo ela.
“Vi diversos objetos excêntricos para vender sobre sua canga. Entre eles
havia até uma réplica do Santo Graal, a tesoura de Valêncio, uma imensa colher
de um Potypo e um pente – que segundo ele, pertenceu a Sherazade.”
E eu lembro muito bem deste sujeito, na vez que desenhei o circo. Um tipo
de cigano comerciante exótico. Engraçado foi que, enquanto eu admirava seu rol
de amuletos extravagantes, ele jogava Angry
Birds no smartphone.
* * *
Fiquei muito assustado com o relato da Rê, lógico. Era primeira vez que
eu passeava com uma assassina. Olhando para Renata, não imaginaria isso. Nunca
suspeitaria de uma moça usando colete de lã, camisa social e óculos de aro
redondo. Atravessando a rua calmamente, olhando para os dois lados. Com uma
serenidade típica curitibana. E se me ponho a relembrar como nos conhecemos –
fazendo curso de história em quadrinhos no Solar do Barão, fica ainda mais
estranho. Aquela menina de cabelo azul, quieta e tímida. Sempre sentada na mesa
do canto, rente à janela. Recebendo dicas do nosso espetacular professor Cláudio
Seto em como desenhar figura humana. Ela era fascinada pelas obras do Will
Eisner e eu preferia os europeus, tipo Miguelanxo Prado.
Do cemitério fomos para o Bar do Pudim. E fui me tornando uma criatura
mais receosa a cada passo. Tratei de averiguar se a moça não carregava algo,
mas ela sustentava uma imensa e misteriosa bolsa de couro pendurada no ombro. Podia
ter o diabo ali dentro.
Ela não era mais a mesma quadrinista que eu conheci há vinte anos.
Sentamos numa das mesas do fundo e pedimos bolinhos de camarão – a melhor
iguaria do Pudim, na minha opinião.
Ao invés de pendurar a bolsa ou deixar na cadeira vaga ao lado, Renata
manteve-a no colo, como se protegesse algo valioso.
E eu perguntei:
“A faca está aí ?”
E ela me respondeu (até hoje não acredito) dizendo que nunca mais a viu.
Largou-a ao lado do morto, apavorada.
“Era como se tivesse vida própria. Ela me mandou fazer aquilo. Foi na
Vicente Machado, em frente ao extinto bar Dolores
Nervosa. Ele conversava com uma piranha platinada. Traíra desgraçado. E ela
falava comigo. Direcionou minha mão em direção ao seu pescoço e o degolei. A
cabeça rolou pela calçada. Não imaginei que tivesse força para aquilo. Jorrou
muito sangue. Apesar de toda filhadaputagem,
ele não merecia morrer. Não devia tê-lo matado. Passei treze anos na cadeia por
causa disso. E só não estou presa até hoje, porque meu pai pagou uma parte da
fiança”. – me contou.
* * *
Os bolinhos chegaram para romper o clima que se tornara demasiadamente
tenso e nós os atacamos com muita ferocidade.
Entre garfadas, camarões e molho de pimenta, continuou a história. (E eu
louco de vontade de escrever tudo).
“Acredito que a faca passou por diversas mãos até chegar a mim. E em
todos os casos, sujou-as de sangue. De certa forma, ela interferiu na minha
vontade. É um objeto diabólico. Talvez seja a responsável também pela morte
dela. Se não fosse isso, talvez a história tivesse sido diferente. Você
acredita nisso?”
“Acho uma teoria bem plausível.” – disse.
Respondi isso apesar do panorama macabro transpor-se com os relatos de
minha falecida avó Wanly, que recebia o espírito iluminado de Bu em sessões espíritas no centro da
Dona Rosinha na Rua Emiliano Perneta. Influenciam-me
também as histórias contadas pela minha amiga Lívia Lakomy, sobre o médium que
incorporou Maria Bueno no dia da construção do túmulo no Cemitério Municipal
(em 1961 se não me engano) e deu várias dicas de cores e ornamentos aos
pedreiros. Inclusive ajudou-o a empilhar tijolos e escolheu o tom de dourado
nos detalhes.
O que pode acontecer é a faca ter impulso próprio. Como no conto O encontro, de Jorge Luis Borges, presente
no livro O Informe de Brodie. Em que
duas facas estão predestinadas a se enfrentarem. E fazem isso no decorrer dos
anos. Empunhadas por homens aleatórios – títeres.
Veio-me também em mente o desenho de um diagrama, traçando locais e
nomes. Uma espécie de infográfico maléfico. Desde 1893 – ano do assassinato de
Maria Bueno, até hoje. Segundo dizem, ela foi morta no mesmo lugar que Renata
matou o sujeito – na Rua Vicente Machado.
Talvez todo causo e conto
possua um desenho. E a narrativa brote da sobreposição destes eixos, círculos, números,
cálculos e diagonais. A saga de Bu
pode ser contada através deste traçado.
Mariana Alípia Bueno teria nascido na Lapa. Não
se sabe ao certo por que razão e como ela chegou a Curitiba. O certo é que
vivia na casa de uma ex-escrava chamada Mariana da Silva Pinto, para a qual
lavava roupa.
Ela foi degolada pelo namorado, o soldado Inácio
José Diniz.
Era época da Revolução Federalista.
Diniz foi preso por causa do assassinato, mas
Curitiba acabou ficando sem o governador e sem o comandante do batalhão, porque
os dois fugiram e entregaram a cidade aos maragatos. Daí todos os presos (entre
eles Diniz), escaparam da cadeia.
Voltou ao trabalho no quartel do 13.º
regimento, que estava sob o comando de Gumercindo Saraiva. Em uma das rondas
que fazia com outro soldado, Diniz roubou a mula de um cidadão na rua e o
degolou – da mesma forma e com a mesma faca que matou Maria. O sogro do morto
viu Diniz com a mula e perseguiu- o até o quartel. O homem fez a acusação de
roubo e contou a história para Gumercindo, que mandou fuzilá-lo.
Então para muitos devotos, esta vingança foi um ato milagroso orquestrado
por Bueno.
E toda vingança sugere um desenho circular que se fecha nele próprio.
* * *
Depois disso, nunca mais soube-se da arma.
Perguntei a Renata sobre o paradeiro e ela disse não saber. Largou-a lá
mesmo, no local.
(E imagine – isto conjecturo só agora – se a faca tivesse caído na exata
posição das outras vezes? Talvez o diagrama do tempo precise o exato local e
direção. Até mesmo a inclinação dos borrifos na parede.) E um médium possa
incorporar Bueno novamente e saber o lugar exato onde ela se encontra. E depois
e depois...
A faca pode estar em posse de alguém ou escondida sob a lama.
* * *
Fui ao banheiro.
Lá de dentro, ouvi uma gritaria bestial. Uma voz feminina disparava
impropérios contra outra pessoa. Reconheci os gritos, mesmo abafados pelas
paredes, de Renata.
Quando voltei, ela discutia com um rapaz barbudo usando camiseta vermelha
que bebia na mesa ao lado da nossa. Ele dizia apenas que ela era louca e afirmava
não conhecê-la.
Aquela não era mais a Renata que eu conversava antes de entrar no
banheiro. Ela havia se transformado numa maluca histérica violenta. Até a
feição e a fisionomia pareciam ter se modificado. Uma expressão de ódio tomou
conta de seu rosto.
Renata estava totalmente transtornada e enquanto batia boca, mantinha uma
das mãos dentro da bolsa.
Isto é o que mais me assustava. Temi pelo que podia acontecer.
Definitivamente ela não era mais a mesma quadrinista que eu conheci há
vinte anos.
Não estava a fim de presenciar um homicídio.
Isso tudo aconteceu em alguns segundos.
Tentei acalmá-la dizendo para irmos embora, segurei seus braços enquanto
xingava o cara de mentiroso, filho da puta, cretino...
Paguei a conta e puxei-a para fora.
Gritava e chorava ao mesmo tempo. Então caiu sentada rente ao muro do
bar, lá fora.
Chorou por um tempo. Depois fomos embora.
Descemos a Rua Senador Xavier da Silva em direção à Mateus Leme e ela,
graças a Deus, se acalmou. Acendeu um cigarro. Compramos cervejas e chocolates num
posto de gasolina.
Ainda meio nervosa, mantinha uma das mãos dentro da bolsa. A outra,
tremia ao levar o cigarro à boca.
Quando perguntei quem era o cara, ela desconversou e disse apenas
tratar-se de um canalha.
Depois de uma boa andada, e quando tive certeza que ela estava melhor, inventei
uma desculpa para ir embora. Disse que precisava passar na loja Grafitti para comprar papel de aquarela
e por sorte Renata não quis ir junto.
Despedimo-nos em frente ao Passeio Público e caminhamos para lados opostos.
E até hoje não sei se a Faca de Bu não
estava dentro da bolsa dela.
Nasceu em Curitiba, em Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUCPR. Trabalha como designer, ilustrador, roteirista e escritor. Desde Abril de 2013 participa dos coletivos “Croquis Urbanos Curitiba” & “Criaturas Crônicas” – grupos que saem para desenhar e descrever a cidade in loco.http://polpacomleite.blogspot.com
http://be.net/fabianovianna
José Marconi
be.net/jose-de-souza
Muito bom Fabiano. Gosto das suas histórias que misturam fantasia com acontecimentos reais da cidade. Fico sempre a me perguntar o que realmente ocorreu ou o que foi inventado. Abs!!
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