Conto: Assionara Souza
Arte: André Coelho
Arte: André Coelho
Se encontrar um homem nu vadiando entre as tumbas do
velho cemitério, leve-o para o campo de experiências e faça com ele todos os
procedimentos necessários à conversão
Em primeiro lugar, adormeça o homem nu até que nele se
desenvolvam sonhos. Enquanto ele dorme e sonha, implante as hastes de penas por
todo o corpo e comece a descrição para que ele reconheça a si mesmo como a um
artista
descreva a pele os olhos descreva dentes descreva a
língua em movimento quando se formam as palavras descreva a textura da voz que
ousou sair de dentro do corpo quando era somente incômodo do sentir e forçou-se
por vontade sair expressar-se descreva as unhas coladas aos dedos descreva as
marcas digitais
o homem nu acorda
sozinho dentro da sala com paredes de espelhos, dispara do teto um jorro de luz
e mil imagens se projetam multiplicadas dentro da consciência do homem nu, ele
pode mirar apenas uma delas
no centro do quarto com paredes de espelho, o homem nu
aproxima-se de uma das imagens (angustia-se por ter abandonado todas as outras
– algumas o ferem no centro oco de quando se deu a primeira compreensão do que
era dor) os olhos miram os olhos perscrutam deslizam pelo rosto comandando a
boca a abrir-se pronuncia-se uma palavra:
a g o n i a
agora, observe se ele já se acostumou à falsa
liberdade de ser um artista, interrogue-o
-há uma simplicidade do lado de fora, não prefere ir
lá? do lado de fora não há paredes de espelhos porque o corpo de um será o
espelho do corpo do outro, o que assusta?, o julgamento o assusta?, o
julgamento como um mapa que foi entregue ao outro para que domine os
territórios extraordinários da percepção, salas escadarias quartos sofás puídos
cartas escritas para ninguém, venha, antes que acabe, antes que fique frio e o
corpo paralise, antes que fique escuro e os olhos não enxerguem, antes que a
vigilância dos pensamentos diga que tudo é mal e que dever ser evitado
o homem nu diante do espelho o
corpo coberto de penas vê pelo reflexo aproximar-se uma criança, não somente por ser uma criança
– o que já seria suficiente para causar espanto – mas trata-se de uma criança
doente que sorri, a doença está dentro da criança desde que nasceu. Faltou oxigênio, o parto foi muito
demorado e faltou oxigênio. Isso mexeu com as funções motoras, hahaha, dela, e
por isso ela, hahahaha, adoeceu assim
o homem nu teme que a criança caia e se machuque,
observar fraqueza ou força espanta em igual proporção, o riso da criança ecoa
dentro do quarto de espelhos, ela está brincando com a ideia de ainda existir
precariamente, o corpo pende ao trocar dos passos, as imagens do homem nu voltam-se para
a apreciação da criança
o homem nu vê a criança
afastar-se e pensa que não compreender faz todo o sentido, esse
será o primeiro aprendizado, depois disso as lembranças do sonho se
encarregarão de erguer paredes altas para o labirinto ficar mais acolhedor a
quem desejar manter-se lá dentro e criar estruturas incríveis aos olhos dos
seres comuns
Se for
necessário, extirpe os olhos. São os olhos que o afastam da compreensão:
1. Espere
que ele adormeça novamente e que sonhe novamente
2.
Arranque delicadamente os olhos
3.
Retorne novamente ao cemitério para que ele, ainda que cego veja-se como um
verdadeiro artista, e aprenda a sobreviver entre cadáveres.
o homem
nu dentro do quarto de espelhos adormece, o corpo mergulha em sonhos
extravagantes, sonha universos simbólicos intraduzíveis, aos poucos a claridade
é substituída por uma escuridão fria
Assionara Souza
Escritora radicada em Curitiba. Publicou em 2005 o livro de contos Cecília não é um cachimbo, 7letras/RJ e é também autora do recente “Amanhã. Com sorvete!” (7Letras/RJ, 2010). Assionara é doutoranda em estudos literários na UFPR, com estudos na obra de Osman Lins.
cecinest.blogspot.com
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