Conto: Daniel Russell Ribas
Ilustração: Liber Paz
Só mais alguns minutos. Mas ela sabe que durará
mais. À medida que a rajada sibila e eletrifica seus nervos por um instante,
percebe que a rua está deserta. É a única alma presente naquele corredor longo
e estreito, cercado por muradas de prédios residenciais. Sabe disso, porque não
é a primeira vez. Talvez sequer seja a última. Como uma caçadora, a espera é
tudo. O frio e as horas demoradas, embora incomodem, são suportáveis. A
expectativa é a chave que mantém seu motor ligado. Ela sente. Ele voltará. E,
quando isto ocorrer, se entregará por inteiro.
A primeira vez foi um acidente. Ela tropeçou. Tinha
terminado um noivado com um homem bom, mas incapaz. Voltava para casa tarde da
noite, a rua vazia e escura, com o chiado do vento como companhia e o frio
lembrando-a de que não se tratava de um sonho. Ou um pesadelo. Ela tropeçou em
um buraco na calçada e caiu. Após atingir o chão, ouviu um som diferente. A
corrente de ar emitia uma frequência aguda, para, em seguida, silenciar. A
ausência de barulho era tamanha que sentiu em uma realidade suspensa, um tempo
parado. Sentiu os ossos gelarem. Ainda estava caída no chão quando o ataque
veio.
O homem arfava, segurando-a com força, explorando
seu corpo com suas mãos. Tentou gritar, mas seus dentes não se mexeram. O
sangue bombeado pelo coração acelerado não surtia efeito em seu corpo
engessado. A rua estava deserta. Nenhuma janela acesa. Em algum lugar, a lua...
Então, de novo, ouvia a frequência aguda. Em seguida, o silêncio, que seria
rompido com o uivo.
Retomou os movimentos de seu corpo, se arrastou na
calçada de pedras portuguesas úmidas e enroscou os braços em portão de um
prédio. Levantou a cabeça. Então, viu.
A criatura deveria ter dois metros. As sombras o
engolfavam, a luz passando apenas pelas extremidades de seus pelos. As pernas e
os braços pareciam moldados em pedra. O longo e afunilado focinho deixava
escorrer a saliva e o sangue. Em sua mão, erguida como um brinde maldito aos
céus, a cabeça decepada do homem que a atacara. O animal a vê e joga o membro
na direção contrária. Ela só sente os ossos gelados e nada mais. Após
encará-la, a fera solta um ruído estrondoso de êxtase e corre para as sombras.
Demorou para recobrar os sentidos. As pessoas que a
acudiram, entre moradores e policiais, lhe contaram que só ela repetia, sem
fôlego: "O lobo... o lobo o matou... O lobo me salvou..." Após
buscas, não encontraram nada similar à sua descrição. Mas ela sabe o que viu.
Pode sentir nos ossos.
Não conseguia dormir. A lembrança era vívida, mas
não o suficiente. O lobo estava lá. Ela sabia. A presença dele a fazia se
sentir mais forte, calorosa, com uma intensidade incomum. Queria tocá-lo. Mais
do que acariciar seus pelos, desejava mergulhar sua cabeça neles. Sentir o
calor de seu corpo e beijá-lo. Os sonhos eróticos aumentaram. Logo, a libido
passou a ser aliviada em fantasias solitárias. Precisava de mais. Sair da
loucura e partir para uma ação mais direta e fatal. Em outras palavras,
deixar-se apaixonar.
Desde então, duas semanas se passaram. A vigília era
severa em seu horário e nas condições climáticas. Nada importava, nem os
comentários. "Cuidado com a mulher de branco!" ou "A noiva do
lobisomem tá nua.", ouvia de forma indireta ou não da vizinhança. Nada
importava, exceto reencontrar o animal e se entregar a ele. O frio, embora
incomodasse, era suportável. O que era o oposto do que queria. Sabia que ele
reaparecia quando a som ficasse agudo e o vento, intenso em seu corpo. Quando
estivesse quase morta. Então, estaria pronta para ser tomada pelo lobisomem,
aquecendo seus ossos gelados pela alma.
Liber Paz
Site: liberland.blogspot.com.br/
Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Participa do grupo “Clube da Leitura” no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro e é editor da Editora Oito. Também participou da antologias “Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1” e “Caneta Lente Pincel” (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra “David Lynch - o lado obscuro da alma”. Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea “A Polêmica Vida do Amor” (ed. Oito e meio).
dribas2.blogspot.com
Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Participa do grupo “Clube da Leitura” no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro e é editor da Editora Oito. Também participou da antologias “Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1” e “Caneta Lente Pincel” (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra “David Lynch - o lado obscuro da alma”. Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea “A Polêmica Vida do Amor” (ed. Oito e meio).
dribas2.blogspot.com
Estamos no clima.
ResponderExcluirOs medos foram soltos pelo Id que sussurra nas sombras.
Algo vem te buscar.
E isso é apenas o começo.