Conto: Ivan Anzuategui
Ilustração: Daniel Gonçalves
As primeiras pedradas vieram numa noite de lua cheia.
Na janela da cozinha. O vidro estilhaçou e algo rolou lá dentro pelo chão de tábuas. Depois, o silêncio.
“– Papai? Papai, você chegou?" Despertei muito zonzo com o barulho. Imaginei que sonhava.
“– Vem pra minha cama”, disse mamãe, quase sussurrando. Havia tremor e receio na voz dela. Cobriu-me até a cabeça e me envolveu nos seus braços. A segunda pedrada, essa ouvi com clareza. Estourou na porta da frente, e algo rolou pela varanda. Mamãe tremia febril.
De manhãzinha havia uma corriola de vizinhos no portão de ripas, quando papai chegou do turno da fábrica. “– Essas pedras não existem por aqui. Negras. Parece que vêm do Inferno.” Atrás de respostas, as pessoas arrodearam por ali, na capoeira, no matinho em volta, no charco do ribeirão.
Papai tinha folga da fábrica, na outra noite, e se armou. A mesma espingarda velha que usava para matar gatos. Uma pedrada caiu sobre o telhado e a pedra rolou até despencar na calçadinha dos fundos. Papai abriu uma fresta, mas nada viu. Foi quando ouviu o baque na tela do viveiro. O bater de asas da passarinhada apavorada foi o que bastou. Escancarou a veneziana e disparou duas vezes na direção do mato.
A resposta foi um... “veeeenha, veeeenha!" Rouco, surdo, fantasmagórico.
O viveiro caído, com a tela arrebentada. Curiós, patativas e coleirinhas se perdendo pelo quintal enluarado.
Mais pedras negras, com cheiro de enxofre. Reunião de vizinhos, rezas e os comentários, na venda, sobre a casa assombrada. Nas noites seguintes, nada mais.
Foi passando o ano, veio a quaresma seguinte e o assunto morreu.
Nos turnos de papai, na fábrica, era eu o escalado, como de costume, para levar a marmita.
“– Pai, achei bosta de cabrito na varanda. O bicho mijou, também. Tá um fedor de enxofre de não aguentar.” O velho virou a cabeça e torceu a boca. Depois de um longo silêncio“– Deixe. Vá pra casa”.
Saiu do trabalho mais cedo e viu mamãe lavando a cozinha. “- Entrou bode, meu bem. Cagou por toda parte e deixou essa fedentina.” Ele silenciou. Foi até a despensa, tirou do armário a arma e uma caixa de balas. “– Que venha!”
Não veio, naquela noite, e na seguinte era escala na fábrica. Meu pai pegou o farnel e se foi.
Mamãe me chamou pra ficar na cama, fazer-lhe companhia. Deu corda no despertador, que brilhava os números no escuro. Agarrou-se em mim e envolveu minha cabeça com os braços.
Meia-noite, começa espatifar a louça da cristaleira.
E o tropel. Alguma criatura muito forte e louca galopava pelas paredes e pelo teto da cozinha. Dava chifradas no armário e destruía as porcelanas, quebrava os vidros de compota, rasgava as toalhas. O cheiro de enxofre entrava pela fresta debaixo da porta.
“– Venha nua e descalça” estava escrito com tinta de sangue no chão da varanda.
Naquela noite, mamãe sumiu, enquanto papai e a vila inteira rezavam na capela. Ainda febril, na cama, tinha visto mamãe se despir, soltar os cabelos e me sorrir docemente. Pôs um beijo nos dedos e tocou meu rosto. Uma sombra, na varanda esperava por ela.
Meus 17 anos vieram com a surpresa do Exército. Convocado que fui, meu pai caprichou na arrumação da mala e me deu um forte abraço, na estação. “– Vai ser homem na vida, piá. Quartel é pra homem. Senta praça. Faz um curso. Vira cabo. Só volte pra cá quando tiver nos braços a divisa de sargento. Isso, aqui, é um atraso. Pura superstição, um povo de merda.”
O trem apitou e Ponta Grossa apareceu na curva.
De malinha em punho, cruzei a plataforma, passei o salão e me dei de cara com a praça, em frente.
Lá estava ele. O circo. A lona amarela, vermelha e azul. A mala me caiu da mão e esqueci dela. Vou caminhando como máquina e passo o portão do circo. Cruzo por debaixo da lona. Começo a andar por entre os trailers, as jaulas, os artistas exercitando a sua arte.
Mamãe costurava uma peça de roupa, sentada junto a um caminhão.
Seus olhos umedeceram quando me viu. “– Como?”.
“– Sempre soube. As pedradas começaram quando o circo chegou. O bode apareceu na segunda vinda do circo.” Abracei minha mãe e caí em prantos."
A menininha foi se aproximando devagar. “- Tua irmãzinha. Nasceu nesta van.”
Olhei para aquela criatura estranha, que cheirava a cabrita. “- Como é o teu nome?"
Ela deu dois saltos, pra lá e pra cá:
“– Bééééééééé!"
Ivan Anzuategui
facebook.com/zuateg
Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música. Editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA, escreve e desenvolve ilustrações para esses periódicos, além de ter participado de outros projetos, como as revistas Fascículo, Arte & Letra e Jandique. Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.
facebook.com/danielgoncalvesarte
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