Ilustração: André Ducci
“Não vos esqueçais de que a Terra ama sentir os vossos pés descalços. Não vos esqueçais de que ao vento agrada jogar com os vossos cabelos”¹
Khalil Gibran
Estávamos eu e meu amigo Murillo Da Rós num destes cafés que oferecem de
cortesia chocolates, na Rua XV, quando ele me perguntou:
“O que você acha sobre um pente que oferece
a imortalidade a quem o usa?”
Na hora achei a pergunta um pouco esquisita e enigmática, porém depois ele
esclareceu-me que se referia ao artefato que teria causado a discórdia que
culminou na “Guerra do Pente” em Curitiba, no dia 8 de Dezembro de 1959.
Segundo um jornal local, o estopim da batalha se deu porque o Subtenente
Antônio Tavares, da Polícia Militar do Estado do Paraná, comprou
um pente pelo valor de quinze cruzeiros e exigiu uma nota do comerciante
libanês Ahmed Najar. Houve uma discussão entre eles e o vendedor fraturou a
perna do Subtenente, arremessando-o sobre a calçada. Depois disso, cento e
vinte lojas de árabes, judeus e italianos foram depredadas por outras pessoas
que se envolveram na confusão. Alguns estabelecimentos foram totalmente destruídos.
Cidadãos de bem e Potypos² se meteram no tumulto, tentando separar os
briguentos. Parece que até o exército fora convocado. Até um tanque enguiçou
vindo do quartel do Boqueirão.
O conflito durou três dias e só
cessou por causa de um temporal na tarde do dia 10. O jornalista, ironicamente,
termina dizendo que nenhum conflito, por mais grave que seja, não resiste a uma
forte chuva, em Curitiba.
No outro dia, centenas de pentes e outros produtos das lojas –
destroçados e pisoteados – formavam um tapete de bugigangas entre as praças
Tiradentes e Osório.
Eu sempre achei inverossímil esta peleja ter sido causada por um mero
pente de plástico. Nenhuma guerra começa assim. Parece coisa de filme. Aliás,
li em algum lugar que o caso pode ter sido fruto da imaginação de um cineasta.
Contudo, meu camarada Murillo, dedicado estudioso da história dos
artefatos mágicos perdidos, mantém a teoria do amuleto incitador. Relata inclusive
que a peça foi batizada de “O Pente da Guerra”, mas há quem acredite – entre
eles meu ex-professor de teoria literária Maurício Pereira, que pertenceu a
Sherazade, em “As Mil e Uma Noites”. Inclusive, segundo conta, foi o pente que
a permitiu viver tantos anos, sem demonstrar nenhum sinal do tempo. Achei o
causo maravilhoso. Sempre fui fascinado por este livro e por seu caráter
fantástico. Lembro-me da primeira edição que peguei para ler. Encontrei numa
bibliotecazinha de bairro, perto da minha casa. Foi nesta biblioteca que li
meus primeiros Charles Dickens, Júlio Verne e descobri a Coleção Vagalume. O
livro “As Mil e Uma Noites” era bem velho, com as costuras a mostra e páginas
amareladas. Se não me engano, faltavam algumas páginas também. Mas como não era
ainda um leitor tão voraz, pulei algumas histórias e li as que me chamaram mais
atenção, tipo “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” e “Simbad”.
Para Jorge Luis Borges, o título do livro se
deve a duas razões. A primeira, supersticiosa, segundo a qual os números pares
seriam de mau agouro. Assim, procurou-se um número ímpar, acrescentando-se o “e
uma”. Caso fosse novecentos e noventa e nove noites, sentiríamos que falta uma
noite. Assim, ao contrário, sentimos que não só nos é oferecido algo infinito, como
de quebra, acrescenta-se uma noite ao infinito.
Incrível que o pente tenha pertencido a
uma personagem que povoou meus sonhos e desenhos desde a infância. Quando eu
tinha mais ou menos uns 12 anos, e estudava no Colégio Jean Piaget, fiz uma
ilustração de Sherazade e o Rei Shariar para a matéria de Educação Artística. A
professora – lembro até seu nome, Alba – gostou tanto que escolheu o desenho
para a exposição e fui muito elogiado.
Utilizei uma técnica mista na composição.
Colei lantejoulas e areia colorida para formar o vestido, e o lençol da cama
fiz com papel de seda tipo mosaico. Coincidentemente, neste meu desenho, Sherazade
penteava os cabelos com um pente dourado.
Escreveu meu ex-professor Maurício Pereira, numa Revista Joaquim que não
chegou a ser publicada:
“O pente foi citado num livro de
cartas entre ela e sua irmã, Duniazade. Dizem, inclusive, que foi presente da
mana, desde que se penteasse com ele todas as noites, para manter-se
jovialmente bela para sempre.”
A matéria trazia também a capa do livro, chamado “Das Cartas com minha
irmã Duniazade”.
Dizia ainda, Pereira, sobre Sherazade:
“Noite após noite, Sherazade tece, com a
ajuda da memória, o fio de suas histórias. Não é um traço linear, mas uma teia
infinita. Uma história dá margem à outra, que, engastada dentro dela, desemboca
numa terceira e assim por diante...”
Na
definição de um tradutor ocidental chamado Rene R. Khawam, Sherazade é "La
Tisserande des Nuits" – a tecelã das noites.
Como o pente veio parar em Curitiba, eu não
sei. Nem Murilo.
Nenhum objeto místico é, segundo dizem, imaculado. Para Murilo, o pente não
deseja ser encontrado. Entre uma bebericada e outra no café, diz que na
verdade, todos os objetos míticos são apenas um.
“Existem mil e um nomes para
simbolizar apenas duas coisas – o cavaleiro e a espada.
O pente já foi o retrato de Dorian
Gray e a espada de Artur – Caledfwlch. Antes teria sido Harpe – a espada usada
por Perseu para decapitar a Medusa. Foi também o Sabre de San
Martín e a lança de
Dom Quixote.
Estes objetos habitaram por muito
tempo as prateleiras dos chamados Gabinetes de Curiosidades, no tempo antigo.
Estes espaços foram os antecessores dos museus. Porém, em fases distintas. Caledfwlch
e Harpe nunca foram vistas uma ao lado da outra, por exemplo. Nestes gabinetes,
as coleções eram organizadas em
quatro categorias, nomeadas em latim: Artificialia, Naturalia, Exótica e Scientifica.”
Sempre fui fascinado por depósitos e coleções. Os desenhos dos Gabinetes
feitos por Van Haecht e o Frontispício do
Museu Wormiani mostrando o quarto das maravilhas de Worm, são maravilhosos.
* * *
Passei grande parte de minha infância na casa de minha tia Neide. Como eu
estudava de manhã e minha mãe trabalhava o dia todo, a tia cuidava de mim
durante as tardes. Minha mãe era professora, mas quando venceu a candidatura e
assumiu a direção da escola, aumentou sua carga horária de trabalho.
O que eu não achava ruim. Porque era um lugar cheio de coisas para fazer.
A casa ficava na Nunes Machado, perto da Praça Ouvidor Pardinho.
A tia Neide era uma pessoa exotérica, com inclinação para todo tipo de
fantasia. Muitos dos filmes de ficção científica que gosto até hoje, assisti
com ela. Fora os livros fantásticos que li na sua biblioteca. E o legal é que
não era um cômodo arrumado, assim como toda a casa também não o era. Sentia-me
muito mais a vontade no meio de tanta bagunça. Os livros, empilhados de
qualquer forma, lateralmente ou em diagonais. Uma biblioteca desordenada é
muito mais atraente e instigante a se perder em seus conteúdos.
Você poderia pegar qualquer tomo empilhado sobre a mesa e lê-lo. Depois
também não precisava guarda-lo no mesmo local. A regra era, que inclusive, o
depositasse sobre qualquer outra prateleira ou gaveta.
Outra coisa que me empolgava era o fato da casa ser habitada por gatos, e
eu sempre gostei de felinos. Na escada externa, que acessa a varanda, havia um
leão de pedra no qual eu costumava galopar. Uma vez meu pé prendeu entre a
estátua e parede lateral e tiveram que chamar o tio Aníbal para empurrar. Por
sorte, sobrevivi.
Eu curtia caminhar sorrateiramente pelo jardim, em busca dos gatos. Tinha
que ser tão silencioso quanto eles, se quisesse observá-los. Ou senão sumiam,
pulavam para os terrenos vizinhos, escondiam-se nos buracos.
Minha tia era tão fascinada pelos bichanos, que as balas que ela oferecia
para os sobrinhos era da marca “Xaxa”, com a cara de um gato na embalagem.
Um dos lugares que eu mais gostava de ir – e na maioria das vezes, sem
minha tia saber, era o quarto de tralhas, atrás da lavanderia.
O cômodo era tomado de prateleiras e armários com rádios antigos, vitrolas,
luminárias abandonadas. Eu gostava de abrir os pequenos baús, fuçar os álbuns
de fotografias, abrir as latas repletas de fichas de plástico – de jogar
baralho. Lembro também de uma caixa de madeira lotada de figurinhas do
Zequinha. Se bobear até o Zahir³
estava lá. Lembro de muitas moedas e até uma esfera parecida com o Palantír4.
Se fechar os olhos, consigo sentir o cheiro de mofo que enfestava o
quarto. E a cara dos bichos empalhados, ameaçadores.
Depois descobri que a profissão de meu tio era taxidermista,
mas na época nem sabia o que era isso.
Um bicho que me dava muito medo era um macaco babuíno com nariz vermelho
e pelagem branca.
Alguns gatos que desapareceram da casa, depois tornaram a aparecer dentro
do Quarto das Maravilhas, porém, empalhados.
Esta era a mágica do lugar. Minha tia dizia que todo o objeto perdido, ia
para lá. Porém, em compartimentos aleatórios. Por isso era comum encontrar um
broche na caixa de canetas, ou um cachimbo com as bonecas de porcelana.
Certa vez aconteceu algo fantástico. Uma carta de meu baralho Super trunfo se perdeu na minha casa e depois a reencontrei lá dentro, no
pote dos alfinetes.
Se fechar os olhos, consigo sentir o cheiro de mofo que enfestava o
quarto.
* * *
Depois da conversa com Murillo, que aconteceu, se não me engano, numa
terça-feira de Agosto, passei a perambular pelo centro de Curitiba em busca do
pente. Não conseguia pensar em outra coisa. Verifiquei as ofertas das casas
chinesas, farmácias e lojas de 1,99 da XV. Deparei-me com todos os tipos
possíveis de formas. Fucei nos bazares e armazéns da parte velha. Adentrei até
mesmo os shoppings populares que já foram cinemas. Vi pentes transparentes,
lisos, de madeira. Redondos, quadrados e até circulares.
Num camelô da Praça Santos de Andrade, encontrei uma peça com arabescos
árabes pintados de dourado. Pensei muito
no Santo Graal e em quanto sua aparência simples e miserável significa.
Diversas noites sonhei com Sherazade nua, penteando sua vasta e negra
cabeleira rente à minha cama. A pele âmbar refletida pela luz da lua, o vestido
de lantejoulas e areia colorida. Mesmo acordado, me pegava pensando. Seus
cabelos são como a guerra – alastram-se pelas ruelas do centro velho.
Amaldiçoadas imagens que se formam na borra do café. É preciso virar a
xícara de ponta cabeça e esperar o líquido secar para daí sim observar os
desenhos. Ursos, serpentes, índios, gigantes de pedra, palácios em ruínas. Eu olhei e vi o
universo. Porque creio que tudo, inclusive o universo, pode estar contido
dentro de uma xícara de café.
Na Galeria Minerva achei que estava sendo seguido. Andei mais rápido, mas
o sujeito continuava em meu encalço. Tentei despistá-lo, atravessando por
dentro da C&A, entretanto senti que continuava perto quando peguei a escada
rolante. Empurrei pessoas, corri dentro da loja derrubando funcionários e
araras. Vi a morte estampada nas roupas. Naquele dia nem voltei ao escritório.
Peguei o primeiro táxi disponível. O símbolo da lua crescente com a estrela do
Islamismo estava gravado no pente que eu comprei.
Meus dias nunca mais foram os
mesmos. Permaneci recluso durante uma semana. Dei uma desculpa qualquer aos
clientes e atrasei alguns trabalhos.
Montei um armário, na dispensa, para
guardar os pentes. No mesmo cômodo onde eu arquivo minhas outras coleções de
objetos míticos – revistas, figurinhas, cachimbos, miniaturas, armas, moedas...
Separarei os pentes por cores e formatos. Dispu-los lado a lado, em ordem
decrescente. Os menorzinhos, em caixas. Também construí um quadro de madeira e
fixei-o na parede para pendurar os modelos mais bonitos. Entre eles o pente com
arabescos dourados que comprei no camelô.
* * *
Dias depois me encontrei novamente com Murillo, no centro, ao acaso. O
mago caminhava com o seu pequeno cachorrinho Yorkshire – o Puppy, na XV, quando
me viu sentado no café. Disse-me que a pouco tinha cruzado por uma moça com um cão
da mesma raça e tamanho que o seu, e que pegara o telefone dela. Isso porque o
Puppy precisa urgentemente de uma namorada.
Convidei-o para dividir a mesa e logo que se sentou, desvirou a minha
xícara vazia que estava ao contrário.
“Permite-me?”
“Claro.”
Enquanto lia a borra, contei-lhe de minha coleção de pentes, o sujeito que
me perseguiu na galeria e dos sonhos com Sherazade.
“Cara, você não vai conseguir
encontrá-lo. Desista. Lembre-se daquilo que te disse. De tempos em tempos o
pente muda de forma para se perder entre tantos outros objetos. Pode ser um
espelho ou de um pincel. Pode ser uma colher, um lápis ou até mesmo esta xícara
em que você bebe o café.”
Se
isto fosse verdade, eu nunca saberia em qual das xícaras entre tantas, bebi o
elixir da juventude. Qual destas revelou-me o segredo da guerra.
Posso voltar aqui, neste mesmo café, diversas vezes e, vez ou outra
beberei na xícara certa. Noutros dias, ela será sorteada por outro.
“Tudo está gravado na borra”,
me diz Murillo. E acrescenta:
“Vejo Sherazade, Rei Artur, San
Martin, Perseu, Dorian Gray e Dom Quixote. Vejo um gabinete lotado de objetos,
armas e animais empalhados. Vejo um velho mendigo penteando a barba. Te vejo
atravessando galerias e lojas de 1,99, depois correndo para pegar um taxi. E
vejo por fim nós dois, sentados, olhando para esta xícara. Num destes cafés que
oferecem de cortesia chocolates, na Rua XV.”
1 Trecho da principal obra de Kalil Gibran, gravado nos painéis de ladrilhos numa das paredes do Memorial Árabe, em Curitiba, no Centro Cívico.
2 Gigantes que habitaram Curitiba durante um curto intervalo de tempo, de 1955 a 1960. Não se sabe se formavam uma família de estrangeiros ou se eram nômades como os ciganos.
3 Objeto de um conto de Jorge Luis Borges. Borges personifica o Zahir em uma moedinha comum, de vinte centavos de peso, que amaldiçoa aqueles que porventura venham a pousar os olhos sobre ela.
4 Os Palantír são artefatos mágicos do universo ficcional criado por J.R.R. Tolkien.
Fabiano Vianna
Brasileiro. Nasceu em Curitiba, Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha como diretor de arte, designer, ilustrador e escritor. Como escritor expressa sua literatura na forma de fotonovelas. Lançou em Outubro de 2009 a revista de literatura pulp, Lama. Em Junho de 2011, lançou a Lama nº 2. Gosta de Moleskines, fotonovelas, charutos, lambretas, gravatas, noir e literatura fantástica. Não fica nem um dia sem o café tradicional das padarias do centro da cidade. Mantém também o blog www.contosdapolpa.blogspot.com.
André Ducci
Excelente conto.
ResponderExcluirMe diverti muito!