Fotografia: Carine Wallauer
Cá estou, cinco minutos antes de
falar sobre a minha candidatura no segundo turno, sobre o que eu poderia ou não
fazer pela cidade que vivo desde os meus dez anos de idade (aliás, isto não
precisa ser dito na campanha - isto de eu não ser de fato daqui). Esta loira,
de saia curta, pernas longas, brancas, mãos delicadas, agora passa a maquiagem
no meu rosto. O texto fervilha em minha cabeça, estou pronto para acionar o
gatilho da minha retórica emotiva. Sei como emocionar, me preparei para isto, para
abraçar com os olhos, através de uma lente, das telas das televisões e do olhar
opaco daqueles que não conseguem mais enxergar a realidade. Vejo no contorno da
luz a nebulosa deixada pelos rastros de pó, carreiras esquecidas no camarim de
algum comício, o final da garrafa de uísque, minha mulher fazendo um chá de
carqueja às cinco da manhã. Nesta sala
de aula, preparo o discurso de final de ano, sempre o aluno de cabeça baixa,
quatro olhos, que prepara o discurso de final de ano e é obrigado a pagar o
lanche dos mais velhos em troca de proteção. Ela, de saia rosa e corpo metade
tigre, vem até mim, com seu crucifixo, com sua adaga e seu olhar de apocalipse,
como se a multidão a nos investigar fosse um tipo de mar portátil, onde
carregamos as angústias do final da vida. Um calouro de uma universidade
particular de última categoria, gastando os restos da mesada em rodadas de
cerveja servidas com desdém pelo garçom, leite derramado entre aquilo que sou e
o que eu poderia ser se estivesse estudado para o vestibular, se me
interessasse mais por livros, arte, estas merdas todas que muita gente sente
prazer em arrotar em festas regadas a vinho tinto e citações em francês. Agora
ela vem até mim, a maquiadora, com seu perfurme Poison (ou seria um Carolina
Herrera?), que eu mesmo dei de presente se ela me acompanhasse até o fim da
campanha, se ela chupasse um sorvete de morango na minha frente, pouco antes de
eu entrar em cena, dando os meus famosos gritos de vitória, fazendo o meu
famoso gesto da aliança, clamando por votos através da minha famosa postura de
origem humilde e sotaque do interior. Numa família onde a morte sempre esteve presente
com suas mãos afiadas na tragédia e no sangue, onde três dos sete irmãos
morreram em acidentes automobilísticos, onde o pai (alcoólatra de carteirinha)
morreu de enfarte, e a mãe, em estado catatônico, teve seus últimos dias
internada numa clínica para retardados, fui o que soube lidar com a raiva,
acumulando em minha cabeça o rancor de uma vida sem perspectiva. Cá estou, para
liberar esta fúria estocada há uns trinta e poucos anos, neste comício,
esperando a lotação máxima e a voz de algum cantor sertanejo para engrossar o
caldo da minha miséria estética, eu que já me encontro com as roupas escolhidas
a dedo pelo meu personal stylish (embora não pareça - embora pareça a roupa comprada na última
queima de estoque de um shopping de descontos qualquer), que já me encontro
aquecido para o discurso da coroação, penso no primeiro animal de estimação que
matei com uma faca de serra tramontina enferrujada, largada num dos cantos da
minúscula cozinha da nossa casa de campo. Agora um gesto brusco, intempestivo,
de meu acessor me faz pensar nas vezes que tive que aguentar a rabugice de
patrões sem escrúpulos me pedindo coisas, me mandando a merda, me escurraçando
dos lugares onde fui obrigado a estar. O beijo de uma eleitora me remete aos
corredores da escola onde tive que aturar a provocação das mais belas garotas
da classe, me chamando de coisas cujos sentimentos provocados em mim, hoje, não
saberia descrever. Peço pra maquiadora a minha pistola sem registro comprada
por um dos meus seguranças de plantão. O marqueteiro dá um sinal, dizendo que
“sim, pode arrebentar os ouvidos desta gente suja”. Estou próximo de uma nova
fase da minha tragetória política, esta tragetória que não tem absolutamente nada
para contar, a não ser imagens vazias de um circo sem palhaço, lona ou
arquibancada. Sim, não há malabarismo o suficiente para me colocar no paraíso
dos bons servidores da democracia. Nunca fiz algo de relevante nos meus cinco
anos de vida pública. Ainda assim, cá estou. Encantando a multidão, me
lembrando, com asco, de tudo aquilo que eu poderia ser. Minha mão treme ao
pegar na nove milímetros. Cheiro mais duas carreiras de cocaína. Meu coração
está a mil.
De duas uma:
1)
ou eu morro aqui dentro
2)
ou eu morro lá fora – nos braços daqueles que,
por algum motivo, ainda me admiram.
E isto eu deixo pra você
escolher, eleitor.
Vamos juntos nesta caminhada
que Deus nos abençoe.
Alexandre França
Nasceu em Curitiba em agosto de 1982. Escritor, diretor teatral e músico, o paranaense já gravou dois cd’s de canções próprias, A solidão não mata, dá a idéia (2006) e Música de Apartamento (2009) - este último contemplado pelo Prêmio Produção – Projeto Pixinguinha, da FUNARTE – , além de viajar o Brasil com sua música. Encenou, com a sua companhia de teatro, a Dezoito Zero Um, cinco das peças que escreveu, entre elas Mínimo Contato (2011) e Habitué (2010). No ano de 2010, ganhou o Troféu Gralha Azul na categoria revelação/direção pelo espetáculo Habitué (que foi indicado a quatro categorias, melhor texto, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e revelação). Lançou dois livros de poemas, Mata-Borrão, Batom (2003) e De Doze em Doze Horas (2010), e possui também poemas publicados em revistas literárias, como a Oroboro e a eletrônica Máquina do Mundo. Atualmente, integra o Núcleo de Dramaturgia –SESI/ PR, sob supervisão do dramaturgo e diretor Roberto Alvim. O blog da companhia é o http://www.dezoitozeroum.blogspot.com
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