Ilustração: Danilo Oliveira
Cortou-se-lhe o bico do seio
esquerdo. O esquerdo ficou pendurado por um pouco de pele. Isto causa agonia
quase insuportável. Mais que dor, agonia. Talvez angústia, proximidade do
desejo. Odiável sensação. Ou sentimento? Mas não sente dor. Queria ter prestado
atenção a ela, mas fechou os olhos e tentou fugir. Pensou que quando o outro
for cortado vai tentar se concentrar. Mas tem medo. Agora sente nada além de
medo do próximo. Mas dá-se conta disto e se recupera. Em que hei de pensar? Nas
escolhas. Melhor não seguir este caminho. Vai me tirar do objetivo. O objetivo
é sentir dor. Vamos. Analisá-la, mais do que senti-la. A questão é que um dia
estava voltando para casa. De noite. Sozinha. Alguém mal-encarado cruzou seu caminho.
Quando se cruzaram, ela teve a impressão de que ele virara o pescoço para
olhá-la por trás. Mas ela não podia olhar e conferir, sob pena de passar por
flerte. Seguiu. Mas tinha a impressão de ouvir passos e aguardou um pouco até
que o homem tivesse saído do campo de visão para poder, finalmente, olhar para
trás. Ainda não. Ainda não. Ainda não. Vou pegar a chave e deixá-la já na mão
para o caso. Agora! Olhou. Ninguém. Muitos carros, entretanto. Mas sente um
pânico tão grande que apressa o passo, começa a temer que um cachorro a ataque,
lata, que um carro invada a calçada ou que não olhe direito para a rua e seja
atropelada ao atravessá-la. Chegou. E só aí seu pânico passa. Ao atravessar o
portão tudo aquilo passa e já não se lembra mais do pavor. O medo nos domina.
Desesperamo-nos pela sobrevivência, agarrando-nos à vida que sequer sabemos de
onde vem. E nos agarramos ao não saber, fugindo dele e tentando recuperar a
segurança da vida que não dominamos. E se eu dominar o medo da morte? Medo da
morte não é propriamente. Em primeira camada, um medo terrível de ser acometida
pelo mal. O susto, ou o medo dele. O medo do medo do... desconhecido? Em
seguida, tentando identificar que mal é este originador do temor imediato, a
agressão física. O sofrimento, apesar de engrandecer, não é desejado. Não
conscientemente. E se ele me bate? Pior! Pior que me bater! E se ele me
estupra? O temor do estupro. Que é convincente para toda mulher. Matamos ou
morremos em nome do estupro. Se o falo é o símbolo masculino, o estupro é o
feminino. Num futuro superador, faremos piadas sobre estupro, chamaremos as
amigas de estupradoras quando quisermos provocá-las, diremos que alguém precisa
é de um belo estupro pra tomar jeito. E se ele quiser fazer por trás? Se ele
for muito grande e estourar meu ... sem o cuidado que esta atividade requer? Se
ele vier com tudo sem lubrificar. Se eu ficar excitada, talvez...Se ele vier
com muita força e eu não aguentar? Meus intestinos estourando. E se eu estiver
com o intestino cheio e ele estourar. Enchendo todo meu interior de coisa que
devia sair por onde ele está entrando? Será que ele não teria nojo? Mas quem é
ele? Este homem ideal que me estupra no medo? Nunca é bonito. Apesar de poder
ser atraente. E se eu gostasse? Não. Não posso gostar. Nunca. Gostar de
estupro...tá maluca? Sempre é moreno, porque estes são os maus segundo o
preconceito. Mas o temor não pára no estupro. Estupro é tema suficiente para
análise posterior, em outro momento, outro sujeito. Ele pode me machucar.
Ferir-me. Mas eu também posso machucá-lo: dir-lhe-ei que me dê seu pinto
palpitando de tesão, pô-lo-ei na boca nojenta e morde-lo-ei até que sobre só um
pedacinho de pele segurando o pinto de merda. Mas minha estratégia de defesa,
apesar de eficaz, não resolve meu temor. A capacidade de reação não resolve
minha tragédia temorosa. Porque ainda assim sinto tanto medo? Cortou-se-lhe o
seio esquerdo. Saiu inteiro, textura grosseira e faca afiada. Mas não prestei
atenção, estava ocupada com o estupro. Posso tentar lembrar. Agora está doendo.
Porque agora está doendo se da primeira vez não doeu? Devo estar me acalmando.
Da primeira vez estava bombando adrenalina que, sei, é anestesiante. Minha
adrenalina deve estar baixando. Amanhã é que vou sentir dor verdadeira. O
momento do corte só é importante por símbologia. O primeiro contato com a dor
causada por elemento externo. Não é o momento da dor verdadeiramente física. É
apenas o primeiro encontro com o desconhecido. O medo. Onde a aflição ao corpo
é realizada juntamente com a simbólica demarcação do início de minha aflição
geral. E neste caso há complicações morais que, provavelmente, aumentam toda a
sensação que acabamos chamando simplesmente “dor”. Vou tentar lembrar: quando a
faca encostou, vi que não tinha dentes e que, portanto, não ia serrar, mas
passar vigorosa e de uma vez. Senti frio e quase fechei os olhos. Senti frio
porque estava frio. E quase fechei os olhos para fugir dali. É difícil
enfrentar o que se deve. E tão difícil escolher o que se deve enfrentar. Já que
geralmente fazemos escolhas sem percebê-las. Resolvera concentrar-me em mim.
Única resolução que segui à risca. Além, é claro, da resolução de enfrentar o
medo. Medo e temor são diferentes. Medo está relacionado ao desconhecido. Temor
é relacionado a um perigo iminente, como um afogamento. Mas falo “medo” ha
muitos mais anos do que tenho esta reflexão. Então provavelmente seguirei por
algum tempo dissociando teoria da prática. Discordando do termo enquanto o uso.
Ás vezes me rasgo de contradição. Ás vezes, só a areia me cola.
Danilo Oliveira
30 anos, trabalha como artista visual e editor. Co-fundador do coletivo Base-V.
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.flickr.com/danilobasev e participa também do coletivo http://multiplogaleria.com.
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.flickr.com/danilobasev e participa também do coletivo http://multiplogaleria.com.
Cilene Tanaka
Nasceu em Curitiba, cidade onde reside e tece sua colcha de contos, crônicas e críticas. Aluna do Núcleo de Dramaturgia do SESC e habitante da Casa Selvática. Gosta de mistérios, barbáries, laços, óculos de armação branca e versos heptassílabos. Flâneur citadina que perambula nas fronteiras da ficção e realidade. Costuma emprestar seus olhos, corações e mentes para circunspecções sobre o teatro em www.gazetadopovo.com.br/blog/teatrofagia.
Mas que textinho transbordante de mau gosto!!!
ResponderExcluirFetiche meio diferente esse, né?
ResponderExcluirBom, minha minha sugestão é criar parágrafos. Esse blocão é meio ruim.
Me perdi algumas vezes... :\