30 de jun. de 2014

Que horas são ?

Conto: Rodriane DL
Ilustração: Júlio Vieira


Descemos a rua dos frigoríficos caminhando rápido. As placas vermelho-escarlate pareciam lápides ostentando a morte dos pobres bichinhos. Você ficava triste e eu apressava o passo. Estávamos indo até o descampado onde eles jogavam os restos dos bois. E sua tristeza acabava rápido, tiquetaqueando junto com meu relógio.
A gente chegava lá e sabia de cor cada decomposição, cada cheiro podre, cada resto de osso lambido até o tutano pelos cachorros vadios que zanzavam por lá. Um deles, com tufos de pelo lutando heroicos contra a sarna, chamávamos de Cão.
Ele abanou o rabo entre as tábuas quando nos viu cruzando a cerca.
- Tá gordo e roliço como um porco esse Cão!
- Mas é feio, hein ?
Eu estiquei o braço e apontei na diagonal :
- Olha, Cris, uma cabeça nova!
Corremos lá para ver o tamanho do estrago. Uma cabeça sem chifres e olhos esbugalhados era a novidade, coberta de moscas ensandecidas.
- O bicho não teve nem chance.
- Não mesmo.
Peguei uma vareta e cutuquei a cabeça bem no nariz, milhões de larvas enlouqueceram saltando para fora.
- Está recheada!
- Parece salgadinho...
Ficamos ali olhando aquele negócio se mexer sem vida por alguns minutos, cutucando e rindo do jeito dela.
- Que horas são, Luis ?
Olhei o relógio e contei os números, porque não consigo saber as horas assim de supetão e isso faz a Cris sorrir.
- Acho que são quase seis.
- Então temos que ir.
Passamos a cerca, não sem antes fazer festinha com Cão que abanava o rabo de tufos, porque Cão bem sabia que a gente voltava.
E voltávamos mesmo, com a mesma desculpa de ver ossos cheios de larvas, escondendo a vontade verdadeira de querer estar junto, seja lá para o que for.
- Eu vi um caminhão de bois chegando na cidade ontem, Cris.
Ela baixou o olhar e eu não gosto quando eu a deixo triste. É como se as larvas invadissem meu coração.
- Vocês acham que vão matar todos?
- Só alguns...  talvez nenhum. Acho que são só para exposição mesmo.
Ela olhou para o descampado com os olhos castanhos e desacreditados. As larvas se mexeram um pouco mais dentro de mim.
- Nós podemos não vir mais...
- Não, Luis. Nós precisamos ver se está tudo ok com o Cão...
Nós dois, apressados como um relógio passando das seis, tínhamos boas desculpas para estar junto um do outro.
E as larvas saíam do meu coração.


Rodriane DL

28 de jun. de 2014

Onde não sopram os ventos

Conto: Sheilla Liz
Ilustração: Ilustre Z




Acordo.
Confuso e tonto percebo estar dentro de um caixão.
O pesadelo de qualquer cidadão, ser enterrado vivo!
O pânico parece durar para sempre. Quantos gritos cabem na eternidade?
Procuro me acalmar. Respiro profundo. E assim, percebo que meu corpo (corpo?) podia deslizar como seda entre as barreiras do receptáculo fúnebre. Num átimo sou cuspido pra fora do túmulo. A sensação é de ter sido parido pela terra seca.
Confuso. Parido. Morto.
Observo os arredores marmóreos do cemitério. Tento me localizar, como foi que morri? Apenas vácuo em minhas lembranças.
Vivo. Interrogação. Morto.
Deve ter sido uma morte abrupta, instantânea, fulminante. Uma morte da qual nem percebi a aproximação.
Inquieto e ainda zonzo, assimilo outra presença ali. Um ser velhaco e corcunda. Sua aparência repugnante me assusta. A vontade é de gritar, mas eu já havia gritado tanto... Então, de maneira educada pergunto ao horrendo fantasma:

-Estamos no mundo espiritual?

Ele me encara silencioso e eu aproveito para observá-lo mais atentamente. Era uma figura medonha. Seus olhos, dois poços. A dor inteira do mundo estagnada neles. A boca, uma minhoca torta, cercada de linhas que se cruzavam como ruas em uma cidade suja e apertada. O nariz, um buraco rotundo que interligava aquele espaço cheio de sombras. No cocuruto cheio de falhas, os fios brancos acenavam ensandecidos, como se estivessem dentro de um redemoinho, porém observo que não soprava vento algum naquele espaço. O ar mais parado do que nunca e os cabelos agindo com vontade própria. Quando o velho resolve falar sua voz demonstra ser tão terrificante quanto sua figura:

-Sujeito esperto. Alguns demoram anos para entender. Outros nunca. Como a criança ali.

 Ele aponta para o fantasma de um menino olhando o céu. Uma figurinha quase invisível entre as cruzes, estátuas, tumbas, flores úmidas e secas, anjos sorrindo e chorando. O velho prossegue em sua horripilante tonalidade vocal:

-Já conversei com o pobre. Tentei explicar que estamos mortos, mas o menino só escuta o que quer! Gosta de falar das constelações, estrelas... Acha que logo a mãe vai pô-lo para jantar e dormir. Então, se o fantasminha é feliz assim, na ignorância, deixa o bobo lá, não é?

Assumindo ares de professor, ele remexe as bochechas forçando um sorriso preto. Continua:

 -E afinal, quem sou eu para dar conselhos? Louco, raivoso e agitado. Expelindo bile até pelos ouvidos! Odiando Deus e todo mundo! Parece já fazer tanto tempo... Veja minha lápide! Emmanuel Marcelos de Costa e Silva. Morto em 1964. Aliás, meu jovem, você que acaba de morrer, em que ano estamos? Faça as contas, por favor, quanto tempo eu resido aqui?
-Desculpe, não posso ajudar. Estou confuso. Não consigo lembrar quem eu era, nem como morri...
            -Não se preocupe. Amnésia fantasma. Logo você lembrará. Enquanto isso, por favor, deixe-me sozinho e praguejando, como é de meu costume.


Afasto-me dali, sem saber muito bem o que fazer e para onde ir. Eu me sentia vivo, mas estava morto. E agora?
A criança fantasma ainda estava lá, observando a imensidão celeste. Existiam estrelas naquele lugar, pelo menos isso! Aproximei-me do garoto e falei:
-Eu também gostava de olhar o céu quando criança.
O menino acena com um riso infantil. Quanta inocência ali! Seus olhos, dois diamantes. A tez lisa e serena. Uma folha em branco, como se todos os problemas do mundo não existissem ou pudessem ser resolvidos num passe de mágica. Quando ele falou sua voz pareceu tão pura quanto à água que brota da nascente:
-É a coisa mais linda de ver em todo o mundo. Você sabia que somos poeira delas? Das estrelas? Foi meu professor de ciências que falou. E eu poderia ficar aqui a vida inteira, mas logo a mamãe chama: Emmanuel, Emmanuel, larga dessas estrelas, o jantar está esfriando!
-Que coincidência... Emmanuel é também o nome do senhor logo ali.
O menino não parece perplexo.
-Muita gente tem o mesmo nome. E qual é o seu?
Tento puxar da memória. Qual era mesmo meu nome? Pedro? Altair? Roberto? Astolfo? Montalvo? Bonifácio? Euclides?  
Não. Nada. Espere... Um fio de lembrança: Emmanuel, Emmanuel, larga dessas estrelas, o jantar está esfriando! Minha mãe também falava assim comigo!
A razão desaba sobre mim como um raio.
Eu sou Emmanuel Marcelos de Costa e Silva!
Eletrificado com a nova informação, compreendo que aquele velhaco tenebroso e amargurado era eu. Assim como também era eu aquele menino cheio de luzes no olhar!
Atemorizado vejo que o cemitério vai ficando repleto de meus espectros. Quanto mais lembro, mais eles aparecem. Centenas. Milhares. Fantasmas de todos os meus dias e horas, de todas as minhas idades e fases. O bebê chorando pelo peito, o menino sonhador de estrelas, o estudante de matemática brilhante, o marido desinteressado, o pai ausente, o homem frustrado, o velho amargurado, o louco solitário.
Percebo que fui muitos e paradoxalmente apenas um. Aquele que agora lembrava tudo e assistia a história de como dois olhos feitos de diamantes transformaram-se em dois poços estagnados de dor.
 Horrorizado repriso meus momentos vividos e encenados. Os erros esfregados na minha cara. Todos os atos e destinos que me tornaram o homem rabugento, repulsivo e desumano que ninguém amava. Recordo todas as noites e dias e de cada instante rasgo um pedaço meu, até não restar mais nada.
 E exausto de todas as paixões, visões e lutas, deito sobre meu túmulo. Desejo apenas dormir. Esquecer. Suavemente sou engolido pela terra. Sei que ao acordar estarei completamente confuso, tonto e vivenciarei de novo minha rotina de morto. Era sempre assim, eu acordava, conversava com meus fantasmas, minhas angústias e esperanças, até descobrir que eu tinha sido todos aqueles e nada podia fazer para mudar o modo mesquinho que vivi.
Antes de apagar novamente na inconsciência da morte, pergunto ao universo como posso ser liberto deste doloroso ciclo. Ele responde que não há como lutar contra moinhos onde não sopram os ventos.
Então descanso, mas nunca em paz.


26 de jun. de 2014

Meio-sangue

Conto: Ivan Anzuategui
Ilustração: Daniel Gonçalves


As primeiras pedradas vieram numa noite de lua cheia.
Na janela da cozinha. O vidro estilhaçou e algo rolou lá dentro pelo chão de tábuas. Depois, o silêncio.
 Papai? Papai, você chegou?" Despertei muito zonzo com o barulho. Imaginei que sonhava.
 Vem pra minha cama”, disse mamãe, quase sussurrando. Havia tremor e receio na voz dela. Cobriu-me até a cabeça e me envolveu nos seus braços. A segunda pedrada, essa ouvi com clareza. Estourou na porta da frente, e algo rolou pela varanda. Mamãe tremia febril.
De manhãzinha havia uma corriola de vizinhos no portão de ripas, quando papai chegou do turno da fábrica. “ Essas pedras não existem por aqui. Negras. Parece que vêm do Inferno.” Atrás de respostas, as pessoas arrodearam por ali, na capoeira, no matinho em volta, no charco do ribeirão.
Papai tinha folga da fábrica, na outra noite, e se armou. A mesma espingarda velha que usava para matar gatos. Uma pedrada caiu sobre o telhado e a pedra rolou até despencar na calçadinha dos fundos. Papai abriu uma fresta, mas nada viu. Foi quando ouviu o baque na tela do viveiro. O bater de asas da passarinhada apavorada foi o que bastou. Escancarou a veneziana e disparou duas vezes na direção do mato.
A resposta foi um... “veeeenha, veeeenha!" Rouco, surdo, fantasmagórico.
O viveiro caído, com a tela arrebentada. Curiós, patativas e coleirinhas se perdendo pelo quintal enluarado.
Mais pedras negras, com cheiro de enxofre. Reunião de vizinhos, rezas e os comentários, na venda, sobre a casa assombrada. Nas noites seguintes, nada mais.
Foi passando o ano, veio a quaresma seguinte e o assunto morreu.

Nos turnos de papai, na fábrica, era eu o escalado, como de costume, para levar a marmita.
 Pai, achei bosta de cabrito na varanda. O bicho mijou, também. Tá um fedor de enxofre de não aguentar.” O velho virou a cabeça e torceu a boca. Depois de um longo silêncio“ Deixe. Vá pra casa”.
Saiu do trabalho mais cedo e viu mamãe lavando a cozinha. “- Entrou bode, meu bem. Cagou por toda parte e deixou essa fedentina.” Ele silenciou. Foi até a despensa, tirou do armário a arma e uma caixa de balas. “ Que venha!”
Não veio, naquela noite, e na seguinte era escala na fábrica. Meu pai pegou o farnel e se foi.
Mamãe me chamou pra ficar na cama, fazer-lhe companhia. Deu corda no despertador, que brilhava os números no escuro. Agarrou-se em mim e envolveu minha cabeça com os braços.
Meia-noite, começa espatifar a louça da cristaleira.
E o tropel. Alguma criatura muito forte e louca galopava pelas paredes e pelo teto da cozinha. Dava chifradas no armário e destruía as porcelanas, quebrava os vidros de compota, rasgava as toalhas. O cheiro de enxofre entrava pela fresta debaixo da porta.
 Venha nua e descalça” estava escrito com tinta de sangue no chão da varanda.
Naquela noite, mamãe sumiu, enquanto papai e a vila inteira rezavam na capela. Ainda febril, na cama, tinha visto mamãe se despir, soltar os cabelos e me sorrir docemente. Pôs um beijo nos dedos e tocou meu rosto. Uma sombra, na varanda esperava por ela.

Meus 17 anos vieram com a surpresa do Exército. Convocado que fui, meu pai caprichou na arrumação da mala e me deu um forte abraço, na estação. “ Vai ser homem na vida, piá. Quartel é pra homem. Senta praça. Faz um curso. Vira cabo. Só volte pra cá quando tiver nos braços a divisa de sargento. Isso, aqui, é um atraso. Pura superstição, um povo de merda.”
O trem apitou e Ponta Grossa apareceu na curva.
De malinha em punho, cruzei a plataforma, passei o salão e me dei de cara com a praça, em frente.
Lá estava ele. O circo. A lona amarela, vermelha e azul. A mala me caiu da mão e esqueci dela. Vou caminhando como máquina e passo o portão do circo. Cruzo por debaixo da lona. Começo a andar por entre os trailers, as jaulas, os artistas exercitando a sua arte.
Mamãe costurava uma peça de roupa, sentada junto a um caminhão.
Seus olhos umedeceram quando me viu. “ Como?”.
 Sempre soube. As pedradas começaram quando o circo chegou. O bode apareceu na segunda vinda do circo.” Abracei minha mãe e caí em prantos."
A menininha foi se aproximando devagar. “- Tua irmãzinha. Nasceu nesta van.”
Olhei para aquela criatura estranha, que cheirava a cabrita. “- Como é o teu nome?"
Ela deu dois saltos, pra lá e pra cá:
 Bééééééééé!"

Ivan Anzuategui
facebook.com/zuateg

Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música.  Editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA,  escreve e desenvolve ilustrações para esses periódicos, além de ter participado de outros projetos, como as revistas Fascículo, Arte & Letra e Jandique.  Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.

facebook.com/danielgoncalvesarte

25 de jun. de 2014

Era o Cova

Conto: Fernanda dos Santos Ferreira
Ilustração: Pietro Luigi



Maria tinha uns 20 anos, a pele super branca salpicada por sardinhas e os cabelos negros e compridos. Abusava de sua sobriedade para mexer com as forças do além e com os senhores, pais de família. A melhor faxineira, auxiliar de borracharia, cozinheira... Maria mudava de profissão como mudava de casa. Sem família, foi adotada pelo bairro. A cada mês a menina faria a felicidade de uma casa, de um trabalho e de vários homens.
Havia um homem em especial que despertava os mais diversos interesses em Maria. Ele era conhecido como Cova, pois nem os mais velhos do bairro o conheciam. Assim como seu nome, quase tudo sobre sua vida era desconhecido, o endereço, a idade, a cor do cabelo, se tinha família... o Cova era o "guardião do outro mundo", o coveiro do cemitério que ninguém nunca vira, mas que cumpria seu serviço toda a noite. 
Maria sonhava em conhecer o Cova. Pensava nele em cada ruga de seus amantes, cada mão calejada que lhe apertava os seios e passeava por seu ventre.
Na noite da quarta-feira de cinzas, um corpo escultural adentrou o cemitério. Quadris largos, seios miúdos que acenavam por de baixo da blusa cor creme e exalavam cheiro de baunilha, o rosto magro das dificuldades, o longo cabelo embaraçado que era soprado pelo vento sobre as bochechas como um véu. Maria, mais viva do que nunca.
Enquanto passeava pelas lápides, tudo ao seu redor ganhava vida. Deitou sobre um leito de mármore e sentiu a pedra gelada eriçar todos os seus mais finos pelos. Sua mão esquerda embaraçava mais o cabelo, enquanto a outra descia pela parte interna da coxa marcando sua pele com as unhas sujas de terra. Com os olhos fechados, Maria sentiu a garganta apertar, trêmula. Levou suas duas mãos ao pescoço e sentiu uma pele dura, fria, cheia de calos. Abriu os olhos e viu um senhor grisalho, surrado pelo tempo, com as mais profundas rugas que já vira. Sorriu um sorriso preto, quase sem dentes e agarrou o cabelo de Maria. O nariz enrugado encostou a orelha branca e exalou um cheiro de cigarro. Era o Cova. Maria podia sentir na mão que apertava sua garganta, era o Cova. Na mão que embaralhava seus seios, era o Cova. Na língua quente que molhava seu umbigo, era o Cova. A cada grito, cada músculo contorcido, cada vez que sua respiração descompassava, era o Cova. 
Maria deitou o homem no mármore e abraçou sua cabeça com as coxas. Do prazer ao desespero, Maria assistiu o homem se debater. Com o rosto lubrificado e o peito silencioso, o Cova não suportou Maria e morreu em meio ao que lhe dava vida. 
O corpo do coveiro nunca apareceu e nas semanas, meses subsequentes, os mortos do bairro continuavam sendo enterrados.
No bairro dizem que Maria ficou louca após olhar dentro dos olhos do Cova. A felicidade nunca mais pairou tão plenamente entre as famílias, os homens começaram a adoecer e suas famílias a morrer de fome.
Maria nunca esteve tão completa. Seguia todas as noites no cemitério, dormia um dia em cada túmulo. Dava vida aos padecidos, e eles davam vida a Maria. Os gritos enlouquecidos que horrorizavam o bairro eram o mais puro prazer de Maria.

Pietro Luigi

Fernanda dos Santos Ferreira

24 de jun. de 2014

Ossos gelados

Conto: Daniel Russell Ribas
Ilustração: Liber Paz


Só mais alguns minutos. Mas ela sabe que durará mais. À medida que a rajada sibila e eletrifica seus nervos por um instante, percebe que a rua está deserta. É a única alma presente naquele corredor longo e estreito, cercado por muradas de prédios residenciais. Sabe disso, porque não é a primeira vez. Talvez sequer seja a última. Como uma caçadora, a espera é tudo. O frio e as horas demoradas, embora incomodem, são suportáveis. A expectativa é a chave que mantém seu motor ligado. Ela sente. Ele voltará. E, quando isto ocorrer, se entregará por inteiro.
A primeira vez foi um acidente. Ela tropeçou. Tinha terminado um noivado com um homem bom, mas incapaz. Voltava para casa tarde da noite, a rua vazia e escura, com o chiado do vento como companhia e o frio lembrando-a de que não se tratava de um sonho. Ou um pesadelo. Ela tropeçou em um buraco na calçada e caiu. Após atingir o chão, ouviu um som diferente. A corrente de ar emitia uma frequência aguda, para, em seguida, silenciar. A ausência de barulho era tamanha que sentiu em uma realidade suspensa, um tempo parado. Sentiu os ossos gelarem. Ainda estava caída no chão quando o ataque veio.
O homem arfava, segurando-a com força, explorando seu corpo com suas mãos. Tentou gritar, mas seus dentes não se mexeram. O sangue bombeado pelo coração acelerado não surtia efeito em seu corpo engessado. A rua estava deserta. Nenhuma janela acesa. Em algum lugar, a lua... Então, de novo, ouvia a frequência aguda. Em seguida, o silêncio, que seria rompido com o uivo.
Retomou os movimentos de seu corpo, se arrastou na calçada de pedras portuguesas úmidas e enroscou os braços em portão de um prédio. Levantou a cabeça. Então, viu.
A criatura deveria ter dois metros. As sombras o engolfavam, a luz passando apenas pelas extremidades de seus pelos. As pernas e os braços pareciam moldados em pedra. O longo e afunilado focinho deixava escorrer a saliva e o sangue. Em sua mão, erguida como um brinde maldito aos céus, a cabeça decepada do homem que a atacara. O animal a vê e joga o membro na direção contrária. Ela só sente os ossos gelados e nada mais. Após encará-la, a fera solta um ruído estrondoso de êxtase e corre para as sombras.
Demorou para recobrar os sentidos. As pessoas que a acudiram, entre moradores e policiais, lhe contaram que só ela repetia, sem fôlego: "O lobo... o lobo o matou... O lobo me salvou..." Após buscas, não encontraram nada similar à sua descrição. Mas ela sabe o que viu. Pode sentir nos ossos.
Não conseguia dormir. A lembrança era vívida, mas não o suficiente. O lobo estava lá. Ela sabia. A presença dele a fazia se sentir mais forte, calorosa, com uma intensidade incomum. Queria tocá-lo. Mais do que acariciar seus pelos, desejava mergulhar sua cabeça neles. Sentir o calor de seu corpo e beijá-lo. Os sonhos eróticos aumentaram. Logo, a libido passou a ser aliviada em fantasias solitárias. Precisava de mais. Sair da loucura e partir para uma ação mais direta e fatal. Em outras palavras, deixar-se apaixonar.
Desde então, duas semanas se passaram. A vigília era severa em seu horário e nas condições climáticas. Nada importava, nem os comentários. "Cuidado com a mulher de branco!" ou "A noiva do lobisomem tá nua.", ouvia de forma indireta ou não da vizinhança. Nada importava, exceto reencontrar o animal e se entregar a ele. O frio, embora incomodasse, era suportável. O que era o oposto do que queria. Sabia que ele reaparecia quando a som ficasse agudo e o vento, intenso em seu corpo. Quando estivesse quase morta. Então, estaria pronta para ser tomada pelo lobisomem, aquecendo seus ossos gelados pela alma.

Liber Paz
Site: liberland.blogspot.com.br/

Daniel Russell Ribas 
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Participa do grupo “Clube da Leitura” no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro e é editor da Editora Oito. Também participou da antologias “Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1” e “Caneta Lente Pincel” (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra “David Lynch - o lado obscuro da alma”. Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea “A Polêmica Vida do Amor” (ed. Oito e meio).
dribas2.blogspot.com

11 de jun. de 2014

O filho do caseiro

Conto: Daniel Gonçalves
Ilustração: André Ducci



Petrônio era o filho do caseiro da chácara dos Aguilar, um casal de idosos que praticamente ignorava a existência do menino. A verdade é que poucas pessoas se relacionavam com o garoto recluso e ensimesmado que, apesar de toda aparência, não era nenhum anjo. Petrônio tinha suas bizarrices, por exemplo, o seu mais obsessivo hobby, o cemitério em miniatura que estava construindo. Em um canto pouco explorado da propriedade dos Aguilar, para cada pequena lápide que ele entalhava em madeira, havia um animal sepultado.

Começou enterrando insetos, tais como: baratas, besouros e grilos, até o dia em que achou um rato morto e providenciou seu funeral. Durante algum tempo se satisfez com a simples coleta de cadáveres, todavia, impaciente para expandir sua necrópole, passou a cometer pequenas atrocidades. A primeira vítima foi o canário dos Aguilar, vulnerável em sua gaiola.  Depois alguns gatos que visitavam inadvertidamente a chácara. Também armou arapucas com as quais capturava ratos, sapos, lagartos e qualquer pequeno animal que por desventura cruzasse seu caminho. O cemitério de Petrônio era o seu orgulho e agora havia se expandido por um bom trecho, até as proximidades do pomar.

Certo dia, voltando da escola, Petrônio avistou uma ambulância em frente à chácara. Aproximou-se cauteloso e, antes de passar pelo portão, observou que era a sua mãe quem recebia o atendimento. O garoto correu casa adentro e trancou-se no quarto, de onde pode ouvir as sirenes dos carros de polícia se aproximando.

Minutos antes, a mãe de Petrônio estava coletando laranjas no pomar, quando percebeu um odor forte de putrefação. Ela, uma senhora religiosa e cheia de superstições, ficou transtornada ao deparar-se com centenas de pequenas cruzes e lápides de madeira. Impulsivamente, ela pegou o rastelo e começou a revirar todo o terreno na intenção de desmanchar aquele cenário grotesco. Revolver a terra daquela maneira fez com que o cheiro nauseabundo se alastrasse absurdamente potencializado, mas isso não foi o pior. O rastelo enroscou em algo e, quando a mãe de Petrônio fez força para livrar a ferramenta, acabou fisgando um sapato. Era o sapato que o senhor Aguilar calçava na noite em que desapareceu misteriosamente.

A visão do pé necrosado emergindo da terra, somada à náusea causada pelo cheiro forte, fizeram com que a mulher desmaiasse. Ela foi encontrada pela senhora Aguilar e o restante dos acontecimentos pode ser deduzido. Agora, Petrônio apenas desenha suas lápides, pois é tudo que lhe permitem no sanatório.



André Ducci
andreducci.art.br

Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música.  Editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA,  escreve e desenvolve ilustrações para esses periódicos, além de ter participado de outros projetos, como as revistas Fascículo, Arte & Letra e Jandique.  Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design.

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10 de jun. de 2014

Viúva Negra

Conto: Eduardo Capistrano
Ilustração: Fabiano Vianna


No começo do trabalho, quando tinha as barbas ainda escuras, gostava de admirar as viúvas à distância. Os traços vagos por trás dos véus, a roupa preta justa marcando as ancas, as lágrimas borrando a maquiagem e vertendo como pingos negros sobre os colos brancos, para serem chupados pelos ágeis lencinhos, os chorinhos escapando pelos lábios entreabertos, grossos de batom...
Quando deixou de ser um ajudante, que só cuidava das ferramentas e alças para içar caixões ou de concretar os caixões sob as tampas de cimento, passou a participar das inumações. Sozinho, adiantava-se à chegada dos enlutados e quebrava o rejunte das lajes, abria os caixões, ensacava os ossos (embolsando qualquer joia ou roupa que algum colega ainda não tivesse surrupiado), limpava a cova da terra e da sujeira e a deixava pronta para o novo defunto.
Escolhia então um ponto estratégico, que lhe desse plena visão dos familiares. Geralmente sabia de antemão se havia uma viúva, pelos agendamentos das capelas ou espionando os velórios. Aguardava até a chegada do caixão, pelos braços da família, e então o colhia com seus colegas e o colocavam cova adentro. Sem uma viúva, deixava os trabalhos naquela hora, para os colegas terminarem.
Mas se houvesse uma viúva... As mãos enluvadas de Erasto apertavam o cabo da pá, os olhos fundos nas órbitas apertados sob o sol, escuros pela aba do boné, enquanto o suor escorria pelas suas têmporas, e ele molhava os lábios sob os bigodes grisalhos. Alcançava a cova passando o mais próximo possível da enlutada, para sentir seu cheiro. Então entrava na cova, apesar da barriga, e a cada abaixada para encaixar o caixão, para pegar uma pazada de terra, para pôr uma tampa no lugar, para aplicar cimento entre as tampas, dava uma olhadela nas pernas da viúva, e acima o quanto a saia permitisse.
À noite, pagava homenagens ardorosas, ainda que não muito respeitosas, à viúva.
Então morreu um certo doutor respeitável da cidade. Erasto foi chamado do plantão e ao chegar ao cemitério, os colegas já haviam aberto a cova e deixado tudo pronto. Resolveu dar uma espiadela no velório e estremeceu ao ver quem era a viúva. A mulher era uma visão gravada a fogo na memória de Erasto. Estivera ali, naquele mesmo cemitério, também enterrando um marido, anos antes. Na primeira vez que a vira, ela estava na meia-idade, e durante o enterro percebeu os olhos de Erasto a desnudando. Pensou vê-la sorrir, por trás do véu, e aquilo o deixou maluco.
E agora ela voltava, mais um marido morto. Agora mais velha. Erasto adorava as velhotas.
Mal podia esperar a hora do enterro. O caixão chegou, mas faltava a viúva. O confuso coveiro deu andamento ao trabalho, entreouvindo que a viúva havia passado mal, mas viria depois. Erasto quebrou o silêncio a que estava acostumado e perguntou se deveriam esperar. A família disse que não, que a viúva havia pedido apenas que não fechassem o túmulo completamente até ela chegar. Erasto colocou o caixão e lançou a terra, mas nada da viúva.
Escureceu, a família deixou o local, pedindo que esperasse pela viúva. Ele esperou, esperou, dispensou os colegas, falando que esperaria sozinho.
Minutos depois, viu a viúva se aproximando. Andava um tanto apressada, olhava por sobre o ombro. Erasto sentiu calafrios, sensação da qual nem mais lembrava o nome.
A mulher deteve-se diante do caixão no fundo da cova aberta. Com dois dedos, ergueu a saia pelos lados e desceu a calcinha até o chão. Arremessou a calcinha no rosto de Erasto, e quando ele a tirou do rosto, a viúva já deitava de costas sobre o caixão, desabotoando a camisa, abrindo as pernas, chamando-o com o dedo.




Eduardo Capistrano
Nasceu no ano de 1980 em Curitiba, Paraná. Bacharel pela Faculdade de Direito de Curitiba. Contista desde 2002, publicou “Histórias Estranhas” (contos, 2007), “A Quarta Dimensão” (contos, 2011) e “Adolpho Werneck: Vida e Obra” (bibliografia, 2012).  

http://edcapistrano.blogspot.com.com
  
Fabiano Vianna
Nasceu em Curitiba, em Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela PUCPR. Trabalha como designer, ilustrador, roteirista e escritor. Desde Abril de 2013 participa dos coletivos “Croquis Urbanos Curitiba” & “Criaturas Crônicas” – grupos que saem para desenhar e descrever a cidade in loco.
http://polpacomleite.blogspot.com
http://be.net/fabianovianna


2 de jun. de 2014

Rodada 6

Tema: Tumbas e lápides
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
10/06 – Eduardo Capistrano / Fabiano Vianna
11/06 – Daniel Gonçalves / André Ducci
23/06 – Daniel Russell Ribas / Liber Paz
25/06 – Fernanda dos Santos Ferreira / Pietro Luigi
26/06 – Ivan Anzuategui / Daniel Gonçalves
28/06 – Sheilla Liz / Ilustre Z


30/06 – Rodriane DL (enviado) / Júlio Vieira (enviado)
01/07 – Gustavo Ramos (parte 1) (enviado) / Simon Taylor (enviar arte até dia 29/06)
02/07 – Gustavo Ramos (parte 2) (enviado) / Simon Taylor (enviar arte até dia 30/06)
03/07 – Santiago Santos (enviado) / André Lissonger (enviado)
04/07 – Luiz Bras (enviado) / Henrique Martins (enviar arte até dia 03/07)

07/07 – Paco Steinberg (enviado) / Foca Cruz (enviar arte até dia 06/07)
08/07 – Milene Lopes Dias (enviado) / Eli Firmeza (enviar fotografia até dia 07/07)
09/07 –  Marco Antônio dos Santos (enviado) / Gustavo Ramos (enviado)
10/07 –
11/07 –

14/07 – Marcelo Amado (enviado) / Elis Marina B (enviar arte até dia 13/07)
15/07 – Diego Gianni (enviado) / Lena Muniz (enviar arte até dia 14/07)
16/07 – Vanessa Rodrigues (enviar conto até dia 27/06) / André Coelho (enviar arte até dia 15/07)
17/07 – Lielson Zeni (enviado) / Sueli Mendes (enviar arte até dia 16/07)
18/07 – Celly Borges(enviar conto até dia 29/06) / Johandson Rezende (enviar arte até dia 17/07)

21/07 – Dragomir Kephas (enviado) / Rafael Pto (enviar arte até dia 20/07)
22/07 – Florestano Boaventura (enviar conto até dia 01/07) / Daniel Carvalho (enviar arte até dia 21/07)
23/07 – Rafael Pesce (enviar conto até dia 02/07) / Frede Tizzot (enviar arte até dia 22/07)
24/07 – Luísa Bonin (enviar conto até dia 03/07) / Francisco Gusso (enviar arte até dia 23/07)
25/07 – Mel Ferreira (enviar conto até dia 04/07) / Thiago Thomé (enviar arte até dia 24/07)

28/07 – Claudio Eduardo Rubin (enviado) / Ibraim Roberson (enviar arte até dia 27/07)
29/07 – Cilene Tanaka (enviar conto até dia 06/07) / Isabele Linhares (enviar arte até dia 28/07)
30/07 – Assionara Souza (enviar conto até dia 07/07) / Gihad Hak (enviar arte até dia 29/07)
31/07 – Nina Zambiassi (enviar conto até dia 08/07) / Bruno Oliveira (enviar arte até dia 30/07)
01/08 – FMAN (enviar conto até dia 09/07) / Danilo Oliveira (enviar arte até dia 31/07)

04/08 – Thiago Tizzot (enviado) / Marco Novack (enviar fotografias até dia 03/08)
05/08 –Detetive Linhares (enviado) / Berje (enviar arte até dia 04/08)
06/08 – Paulo Biscaia Filho (enviar conto até dia 10/07) / Hafaell Pereira (enviar arte até dia 05/08)
07/08 – Diego Fortes (enviar conto até dia 11/07) / Zansky (enviar arte até dia 06/08)
08/08 – Fabiano Vianna (enviar conto até dia 12/07) / José Marconi (enviar arte até dia 07/08)