28 de set. de 2012

A porta trancada


Texto: Mel Ferreira
Ilustração: Júlio Vieira




Você não faria isso.
O que?
Solte...
Você gosta?
Você não faria isso.
O que?!
Aperte de novo.
Você gosta?
Você nem teria coragem.
De que? (Risos insinuando algo.)
Está quase me cortando, sabia?
Você não gosta?
É que você não faria isso mesmo.
O que?
Com aquele machado.
Isso?
Esse.
Posso segurar seu braço?
Não faria isso...
O que?
Mais firme! (Pausa) E se eu te pedisse para abrir minha blusa?
Eu faria isso?
Você é covarde. Aquela faca esquentando no fogão...
Eu faria isso?
Você é covarde.
(Ele rasga sua blusa).
Entregue.
Não, pegue você.
(Ela tenta. Seus braços friccionam entre a cadeira e a corda que os prendem. Um vergão especialmente no pulso.)
Dá.
Você quer a faca?
Você não me cortaria.
Arranco seus dedos com canivete se você alcançar a faca esquentando no fogão.
(Um grito com os dentes cerrados.) Eu quero!
O que?
Corta.
A corda?
Meu braço!
Eu faria isso?
Você é covarde. Arranque meu braço!
Quer mesmo?
O aquecedor.
O que tem ele?
Encoste aqui na minha bochecha.
(Ele pára na frente dela. Olham-se fixamente.)
Não. (Diz devagar)
Aquele liquidificador... Nos meus cabelos... (Ela lacrimeja.)
Não.
Então me solte que eu vou pular!
Da janela? Está trancada.
Coloque veneno no meu olho? (Quase fazendo manha)
(Ele implacável.) Não.
Beije minha boca.
(Imóvel. Frio. Nenhum sinal de expressão no rosto dele.)
Estou grávida.
Parabéns.
Vai! Agora pegue um pedaço da minha orelha e jante.
(Silêncio.)
(Ele se levanta. Tira a faca quente do fogão. Deixa ao lado da cabeceira.)
Não alcanço! (Berra.)
(Ele pega o aquecedor ligado. Coloca perto das costas dela.)
Por favor, encoste! (Desespero.)
(Ele toma o alicate nas mãos e crava no cachorro.)
É minha vez!
(Ele tira uma chave do bolso. E sai.)

Ps. Volte ao início.

Mel Ferreira
Publica outros contos e narrativas em seu blog: eternoseefemeros.wordpress.com   

Júlio Vieira
Publica suas criações no blog: juliovieira.blogspot.com

26 de set. de 2012

Contos da Cripta apresenta: Mais olho que barriga

Conto: Daniel Russell Ribas
Ilustração: Lord Velprost



Guardião da Cripta: Olá, crianças! Aqui é seu amigo, o Guardião da Cripta, e eu tenho uma receita de matar, hi hi hi hi hi. É sobre um homem que descobriu uma das maiores delícias que existe: A Morte! Então, preparem seus sacos de vômito para esta refeição macabra que eu chamo:   
     
Mais olho que barriga
Brown Glass odiava cheesecake. Como importante crítico culinário, achava que deveria ser o mais isento possível. Acreditava que qualquer falha em um experimento gastronômico deveria ser culpa de seu perpetuador, não da matéria-prima. O material não tinha emoção ou racionalidade, existia somente para ser manipulado por mãos hábeis e se transformar ou em um espetáculo digno de êxtases proustianos em sua boca ou em uma manifestação da morte ceifada por uma criatura sem alma; uma merda preparada por um ignóbil, enfim. Claro que não escreveria "merda" em seus textos. Era um cosmopolita. Mais do que um intelectual brasileiro, era um novaiorquino do Upper West Side. Escreveria merde, se arrastando na primeira sílaba tônica.
No entanto, havia alguma coisa em seu ser mais íntimo por que nutria desprezo, nojo: cheesecake. O que era aquela coisa? Era um salgado, mas parecia um pudim de tofu com mais consistência. Era enjoativo, e não doce, sequer o contrário. Só o contato com o interior de sua boca bastava para que uma agressão, uma blitzkrieg contra seus sentidos fosse iniciada. Pedia desculpas para ir ao banheiro e vomitava além do que consumira durante o dia, como uma garota bulímica de 14 anos. Ele arrancaria sua língua se tivesse coragem ou outra maneira de sustento. Afinal, era um cosmopolita e, como tal, só sabia praticar uma única atividade. Ele era um crítico culinário, mééééérd!
Este segredo fazia parte de uma área da mente de Brown Glass que ele alcunhou como "o baú da vergonha". Os constrangimentos legados cumpriam a tarefa de relembrá-lo da necessidade de discrição. Sim, ele era membro da família de artistas considerados loucos e misantropos. Seu tio Seymour se matou num quarto de hotel ao lado da mulher deitada na cama. Seu sobrenome, Glass, um caco infeliz em uma peça perfeitamente estruturada. Glass; uma vitrine para a loucura, quase uma marca do anticristo. Tudo aquilo era verdade, mas, agora, eles estavam mortos. Até o escritor barato que popularizou sua família deixara de ser alimento para a mente para se tornar comida para vermes. Ele, o crítico culinário, não o louco de vaudeville, faria sua história.
Brown Glass, além de autoridade jornalística, também estava noivo de Gertrude Scheizen. Apesar do nome de origem alemã, ela era tão wasp quanto Woody Allen, Martin Scorsese ou a Estátua da Liberdade. Sua voz lembrava o zunido de uma vespa, mas isso vinha com o pacote, junto com os infinitos jantares festivos, comentários azedos a respeito de arte contemporânea e a temperada frigidez. Mesmo frustrado sexualmente, Glass sabia que este comportamento era um sinal de aprovação social e canalizava a energia acumulada em palavras impressas semelhantes a um estupro grupal.
Um dia, Brown Glass chegou à redação e, após deixar seu cachecol de cashmire e paletó tweed verde-oliva de Savile Row com a secretária, recebeu desta um envelope. Na parte da frente se lia a inscrição: "The Reaper - Para terminar a noite com um nocaute". Glass de imediato achou a chamada típica de um boteco do cais e jogou o bilhete na lata de lixo. Pegou o jornal e o leu, com destaque para a seção de Economia, porque ele e Gerdie receberiam primos de Wall Street esta noite. Terminou e foi ao banheiro se masturbar. Ao retornar, notou que o envelope que tinha atirado ao esquecimento havia feito o trajeto até a parte central de sua mesa. E estava aberto. Antes que pudesse reclamar, uma misteriosa curiosidade subiu em sua coluna como um carrapato, e Brown Glass se viu lendo o carta em transe. "Venha conhecer a cozinha do Chef Eli Bathory, cujos pratos são de morrer". Talvez fosse seu desejo destrutivo de crítico ou pura ânsia suicida, mas, após a leitura, Brown Glass pegou o telefone e cancelou o jantar com sua esposa e os primos, porque um trabalho inesperado havia surgido.
Após algumas voltas, o crítico encontrou o restaurante. "The Reaper" ficava localizado em uma rua deserta, escura e enevoada. Ele entrou e foi recebido pelo chef, aparentemente o único funcionário presente. Glass achou isso um insulto para uma personalidade como ele. Contrariado, pediu o prato principal "para acabar logo com isso!" Bathory depositou na mesa um grande, amarelo e ameaçador cheesecake. Glass quis se levantar e sair daí, mas não poderia dar o braço a torcer. Cortou uma fatia pequena e a levou à boca. E uma sensação semelhante a um orgasmo cultural atingiu suas papilas gustativas, correu para o sistema nervoso e se manifestou em sua virilha. Em lágrimas, declarou ser o melhor prato que provara em sua vida, e pediu mais um. E mais um. E mais um. Quando se deu por vencido, perguntou para o chef qual era o segredo. Eli Bathory se inclinou e, em seu ouvido, sibilou: "Almas humanas frescas." "Como assim, almas humanas frescas?", riu Glass. "Os olhos são a janela da alma. Então, eu arrumo mendigos, os mato e sirvo no meu restaurante. Os olhos são para a receita do cheesecake." "E o resto?" "Bom, temos a noite do churrasco à brasileira..."
Glass fugiu. Não ligou para a indigestão ou para o fato de que agora seria alvo de um "serial killer". Só queria chegar em casa. Sem fôlego, abriu a porta e a fechou com força. Então, ouviu barulhos vindos do quarto. Pegou uma faca e se deparou com Gerdie Scheizen esparramada na cama, nua. Ao redor dela, os primos de Wall Street, pelados e assustados. Logo atrás, uma câmera gravava a cena para posteridade. Gerdie engatinhou em direção a ele e explicou que eles só estavam relembrando quando nadavam sem roupa no acampamento de verão. A mente de Brown Glass se fez um lago cristalino e, em um ímpeto, eviscerou os parentes masculinos de sua noiva ordinária. Após nocautear Gerdie com o cabo da faca, Brown Glass ligou para o "The Reaper": "Alô, senhor Bathory? Como vai? Adorei o restaurante, mas não é por isso que estou ligando. Eu queria saber se vocês fecham tarde. Porque esta noite eu pretendo finalmente comer a minha mulher."

Guardião da Cripta: Pobre Gerdie. Mas mulheres ricas sempre entram na faca, não é? Quanto a Brown Glass, não se preocupem. Ele acabou de criticar sua última refeição e dizem que ela foi... ELETRIZANTE! HA HA HA HA HA HA HA!!!... 


Daniel Russell Ribas
Foi criado no Rio de Janeiro. É formado em Jornalismo pela PUC - Rio. Fez roteiros, matérias e contos. Ele participa do grupo "Clube da Leitura" no sebo Baratos da Ribeiro, no Rio de Janeiro (www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura), é editor da Editora Oito e meio (www.oitoemeio.com.br) e escreve um blog desatualizado (dribas2.blogspot.com). Também participou da antologias "Clube da Leitura, modo de usar, vol. 1" e "Caneta Lente Pincel" (ed. Flanêur) e escreveu para o catálogo da mostra "David Lynch - o lado obscuro da alma". Recentemente, organizou com Flávia Iriarte a coletânea "A Polêmica Vida do Amor" (ed. Oito e meio). 

Daniel Gonçalves
Radicado em Curitiba, casado com Amarilis e pai de Leon, Layla e Alice. Teve toda sua vida permeada pela paixão à literatura, artes visuais e música.  Atual editor da revista LODO e co-editor da revista LAMA.
Paralelamente aos trabalhos artísticos, desenvolve projetos de arquitetura e design. 
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.danielgoncalves.art.br.  



25 de set. de 2012

Selvagens


Conto: Luiz Bras
Ilustração: André Ducci



Somos jovens. Somos voluntários.
Estamos numa sala branca com uma cama no centro.
Estamos nus, deitados na cama branca da sala branca.
O chefe da equipe de engenheiros pede que eu beije minha namorada.
Eu sinto minha língua tocando a dela. Então começo a sentir minha língua tocando minha própria língua. É engraçado.
O chefe da equipe de engenheiros pede que façamos sexo.
Eu começo abraçando minha namorada. É como se eu abraçasse outra pessoa e ao mesmo tempo me abraçasse. É como se eu penetrasse outra pessoa e ao mesmo tempo me penetrasse.
Eu gozo.
Minha namorada goza comigo. O meu gozo é também o seu gozo.
No dia seguinte a sala branca está vazia, tiraram a cama branca.
Eu e minha namorada temos companhia: dois outros casais. Todos nus.
Somos jovens. Somos voluntários.
A equipe de engenheiros traz uma mesa e seis cadeiras.
Passamos a tarde jogando cartas.
Jogo insólito. Meus olhos veem minhas cartas e as cartas dos meus colegas de experiência. Eu vejo tudo pelos meus olhos e pelos olhos dos outros e os outros veem tudo pelos próprios olhos e pelos olhos dos colegas de experiência.
No dia seguinte não encontramos o engenheiro-chefe nem sua equipe.
O prédio está branco e vazio.
Foram embora e levaram com eles todo o equipamento branco.
Menos os seis implantes neurológicos: um em cada um de nós.
Não há água nem comida. As portas e as janelas foram lacradas.
Sede. Fome.
No dia seguinte um de nós urina num copinho de plástico e bebe a própria urina.
Sinto a boca cheia. Todos nós sentimos a boca cheia. Engolimos. Não é tão ruim quanto parece.
No dia seguinte minha namorada morde meu antebraço. Eu sinto a dor da mordida e a sensação de estar mordendo. Todos os seis sentimos a mesma coisa.
Minha namorada não consegue parar de morder e ser mordida.
Eu soco seu queixo e recebo na hora meu próprio soco.
Sinto meus dedos tentando abrir meu couro cabeludo. Não são meus dedos, não é realmente meu couro cabeludo. Um de nós, muito desesperado, está tentando tirar o próprio implante.
Um de nós chora e todos nós choramos.
Somos jovens. Somos voluntários.
Um de nós encontra uma faca numa gaveta qualquer.
Sinto a lâmina penetrar meu abdome. Todos os seis sentimos a mesma coisa. Somos o assassino e a vítima.
O vermelho tinge o branco, o branco tinge minhas retinas, nossas retinas, eu perco a consciência, todos nós perdemos a consciência.
No dia seguinte chegam novos voluntários, todos jovens.

Luiz Bras 
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato:
 luizbras.wordpress.com


André Ducci
Seus trabalhos podem ser visualizados no site http://abducci.blogspot.com

24 de set. de 2012

Quase Cyrano

Conto: Eduardo Capistrano
Ilustração: Pedro Giongo




Enfim, os braços envolvem seu corpo delicado. Mas não os meus; não sou eu que sinto sua pele macia ou seus cabelos sedosos. Eu estava tão perto que os meus lábios poderiam tocá-la, em um beijo suave. Queria sentir minha face tocando seu corpo naquele momento. Mas não senti. Nada senti. Devo contentar-me, em meu esconderijo, apenas com seu perfume. Mas queria mais. Queria sentir seu gosto. E sentiria. Logo.
Enfim, o beijo. Ah, aquela boca rósea, aqueles lábios carnudos, tocam lábios que não são os meus. Tocam os lábios dele. Lábios que disseram palavras que não eram dele. Palavras de amor que ele não sentia, porque o que ele sentia era paixão, era fogo, era gula. As palavras eram minhas. Eram minhas a angústia e a fome! A necessidade de sentí-la, de envolvê-la, de possuí-la. Eu as sentia plenamente, sempre que a via, e cobiçava sua proximidade, e imaginava prazeres insanos enroscando-me em seu corpo, tomando conta dele.
Para meu irmão era impossível tecer as palavras, articular sentimentos que fariam ela se abrir. Para mim era como descrever minha própria casa ou a mim próprio, algo tão familiar como o furor de querer vê-la, igual ao de vê-la, igual ao de não querer deixá-la ir. E foram as minhas palavras que pavimentaram o caminho para aquele abraço, para aquele beijo, para ela e meu irmão seguirem de braços dados, apaixonados, acalentados pela emoção, embriagados pela antecipação da entrega de um corpo ao outro, para a carne que se satisfaz só com ela mesma.
Mas eu estava lá, desde que eu eu meu irmão a víamos, e eu suspirava, arrebatado por sua beleza e graça, e meu irmão se afobava em impulsos viscerais que em seu arremedo de espírito eram o que mais se aproximavam de admiração. Eu estava lá para tentar dissuadí-lo, em meu ciúme platônico, e falhar, para minha desgraça. Para então sugerir as primeiras pequenas palavras, e depois outras tantas palavras e frases e canções e poemas e gestos e presentes. Eu sempre estive perto, a ponto dela quase ouvir meus galanteios sussurrados, antes de ouvir os mesmos pela voz de meu irmão. Eu tinha que estar, para moldar aquela paródia do que eu próprio sentia em algo realmente meu.
E lá eu estava. Caminhando com eles para a consumação do que apelidaram de amor. Subindo as escadas para a realização, a libertação um no outro. A porta se fechou atrás deles. Os corpos se envolveram, as bocas se encontraram. Ele fez menção de apagar as luzes. Ela o impediu. Queria presentear-lhe sua nudez e o fez, removendo as roupas lenta e sensualmente. Ela terminou deitando seu lindo corpo na cama. Ele fez nova menção de apagar as luzes. Ela, de novo, o impediu. Queria que lhe devolvesse o presente.
Sob esse pretexto, meu irmão colocou-se diante da porta. Sutilmente a trancou, e em seguida removeu os sapatos, o cinto, a calça, dirigindo-se à cama. Ela pediu para ver tudo. Ele abriu os primeiros botões. Eu, enfim, a veria sem obstrução, não através da fresta dos botões ou do pano da camisa. Assim como ela me veria. O rosto demoníaco no peito de meu irmão.
Ela gritou. Não compreendia que eu a queria, que eu a desejava, que eu precisava dela mais do que tudo? Estivera até então disposta a satisfazer com sua carne quem a seduzira. Era o que faria. Como as outras.


Eduardo Capistrano

Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. 
Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011).Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com

Pedro Giongo  
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: http://estudiotijucas.com