30 de jul. de 2012

C'est la vie

Ilustração: Elis Marina B
Conto: Diego Gianni

Um ruído horrendo.
Um gemido, coisa assim. Não era humano.
O homem gordo, calvo e de meia idade acendeu o abajur, entre o sono e o susto. O relógio mostrou em cor vermelha feita os seus olhos: três da manhã. Um horário maldito para quem sofre de insônia, dorme a base de tarja preta e precisa estar no terminal de ônibus as seis e meia da matina para ir rumo a um trabalho qualquer. Que merda de pesadelo escroto.
Mas então...o som novamente,
feito choro de criança febril e convulsiva.
Não era um pesadelo, não era a porra de um pesadelo!
Levantou da cama então, ele, o recém viúvo obeso, calçou os chinelos, saiu do quarto e desceu a escadaria, guiado pelo barulho estridente. O som vinha da cozinha, iluminada pela luz da geladeira que alguém deixou aberta.

Mas quem? Na casa ampla e fria, agora só moravam ele e a filha, um anjo de menina.

Foi se arrastando receoso até a porta da cozinha, preparado para sei lá o quê.
Besteira.
Nada poderia tê-lo preparado para aquela imagem.

Esqueci de mencionar que o gordo tinha um gato. Ele e a falecida esposa deram o gato de presente para Doralice quando ela tinha o que...dois aninhos?
Agora era um gato meio idoso e mole, de doze primaveras.
Era. Não é mais.

No chão da cozinha, o corpo do pobre gato coberto de sangue. O bicho ainda chegou a gemer mais uma vez, uma última vez, quando o dono entrou na cozinha e ficou ali, boquiaberto, a olhar para o animal agonizando.
Passado o choque da primeira impressão, se aproximou do gato para ver o que tinha acontecido. E então pisou em algo viscoso e escorregadio: o pênis do gato. Era dali que vinha a hemorragia, a poça de sangue, a agonia do infeliz.

Não havia sido um acidente.

Subiu correndo para o quarto ao lado do seu, o quarto do seu anjinho, da meio órfã Doralice. Ela dormia. Estava bem. Parecia bem.
Decidiu não acordar a filha e tornou a fechar a porta do quarto, lentamente, como quem quer proteger alguém que ama da crueldade do mundo. Sabia que a filha gostava do gato como se fosse um filho. Como daria esta notícia para ela no dia seguinte? Não fazia nem seis meses que enxugou os olhos de Doralice enquanto baixavam para baixo de sete palmos o caixão preto e ordinário da mãe, que era um amor de pessoa, muito carinhosa com a filha, mas fumou demais, bebeu demais.     

C'est la vie. É a vida.

Voltou para a cozinha e tratou de limpar o caos, esfregar do ladrilho as manchas secas e rubras do massacre. Depois trataria de resolver o mistério, supondo que tudo aquilo fosse real.
Uma pena.
Se tivesse, por algum motivo, por qualquer resquício de desconfiança ou intuição, olhado debaixo da cama da filha, veria uma faca de cozinha suja de sangue.
Doralice dormia mesmo. Serenamente.

Mentira seja mal dita, Doralice recebeu bem a notícia. Relativamente. Chorou nos braços do pai, mas não fez escarcéu. Já era uma moça de treze anos, não era mais “o anjinho do papai”. E ademais, pra quem já perdera a mãe, com o perdão da palavra, o gato é que se foda.
Já fazia meses, amigos notaram, que Doralice parecia anestesiada. Passada a tristeza pela morte da mãe, sua fonte de lágrimas apodreceu. Andava feito zumbi, respondia as coisas automaticamente, qualquer notícia ruim ou imprevista ela respondia sempre com o mesmo gesto, o mesmo dar de ombros: tanto faz, é a vida.

Na madrugada de 28 de julho de 2012, Doralice, a sonâmbula, desceu a escadaria vagarosamente, andou até a pia da cozinha, pegou uma faca e foi indo, indo, indo...indo em direção ao quarto do pai.

Ficou de pé, parada ao lado da cama, “olhando” o corpo do pai em repouso. O velho havia dado pra beber, era seu jeito de lidar com a dor.
E que dor.
Doralice cravou a faca mal afiada nos testículos do pai, que abriu os olhos e urrou de aflição. Olhou ofegante e apavorado para o anjo na sua frente, o seu anjo, a sua menina.

“Mamãe abusava de mim”, sussurrou antes de decepar a cabeça do pênis do progenitor. Feito morta-viva, largou a faca no chão, voltou para sua cama e deitou. Segundos depois, entrou em sono ainda mais profundo. Dormia, serena.

Doralice, hoje detida em um manicômio, reagiu bem a sua prisão.
Relativamente.
Ela, que estava sonâmbula, que não havia feito nada de forma consciente, mal pode acreditar quando o advogado da família contou para ela os detalhes. Por dentro, ela pensou: não posso acreditar que castrei meu pai. E depois, mais surpresa ainda, conjeturou: não posso acreditar que eu castrei meu gato!  
Mas se entristecer, não entristeceu. O advogado pago pelos avós da menina prometeu que ia fazer de tudo para reverter à situação, e que logo ela estaria livre, que nada justificava o clausulo de uma garota tão jovem, com tanta vida pela frente e coisa e tal.
Mas Doralice respondia sempre com o mesmo gesto, o mesmo dar de ombros: tanto faz, é a vida.

C'est la vie.

Diego Gianni
Nasceu em 1.982, na capital de São Paulo. Mudou com a família para Curitiba ainda na infância e começou a escrever peças de teatro em 2.004. No período de seis anos, escreveu mais de cinquenta peças teatrais que foram apresentadas por diversas companhias de teatro em vários estados. Ganhou prêmios de melhor texto conferidos pela Cena Hum (Academia de Artes Cênicas) e também pela Fundação Cultural de Curitiba. 
Tem contos publicados em jornais e revistas e posta textos semanalmente em blog´s e sites, tais como tracasemcedilha.blogspot.com ; acontececuritiba.com.br. 
Recentemente, ganhou o concurso literário promovido pelo evento Risadaria (1º bienal do humor realizada no país), tendo seu conto exposto no mural da Bienal de São Paulo. Está lançando seu 1° livro "Dores crônicas que nem te conto". Atualmente cursa jornalismo.

27 de jul. de 2012

Limoeiro

Arte: Francisco Gusso
Conto: Dragomir Kephas



O sujeito taciturno, habitante solitário daquela paisagem desolada, seguia por uma trilha rumo à civilização para adquirir mantimentos. Em certa altura do trajeto deparou-se com uma carroça que havia deslizado e estava encalhada em um barranco. Uma mula jazia suspensa pelo dorso e, caído sobre o assoalho da carroça, estava um padre abraçado a uma grande cruz de madeira. O andarilho verificou que o clérigo estava morto, embora não apresentasse ferimentos. Com dificuldade, desvencilhou a cruz dos dedos do defunto, foi quando percebeu que o objeto era oco; algo sacolejava em seu interior. Na base do artefato havia um orifício, uma fechadura, que foi aberta com a chave que o eremita encontrou pendurada no pescoço do padre. A base da cruz desprendeu-se e de dentro do objeto o homem retirou um limão; seco, duro como pedra. Enquanto protegia o padre dos urubus, ajeitando-o sob o assento da carroça, negligenciou a fruta que caiu em uma fissura do solo erodido. Continuou seu caminho, pretendia retornar com ajuda para levar o padre ao cemitério da vila.
Dois dias depois, o eremita retornou acompanhado pelo pároco local e dois policiais emprestados pelo delegado. Para espanto do homem solitário, um frondoso limoeiro havia crescido junto à carroça. A planta devia ter uns três metros de altura, pela sua avaliação. A pequena fissura, em que o fruto havia caído, era agora uma fenda tão grande, que serviria para ocultar o cadáver da mula e ainda sobraria muito espaço. Perplexo, tentou relatar os fatos sem parecer insensato, mas foi ignorado. O padre morto certamente priorizava a atenção daqueles que o acompanhavam.
Primeiro desprenderam a mula e arrastaram-na para a fenda no solo, conforme previsto pelo eremita. Então, nivelaram a carroça, de modo a conduzir o padre para a vila em seu interior. Para isso haviam trazido o cavalo da paróquia. O esforço exaustivo sob o calor do pleno sol levou um dos policiais a experimentar um daqueles limões. Espantou-se com a suculência e doçura da fruta. Todos, exceto o ermitão, entregaram-se ao deleite oferecido pelo limoeiro. O homem simples tentou alertar novamente, sobre o mistério daquela árvore, mas foi ignorado mais uma vez.
Em poucos minutos, aqueles que haviam provado as frutas começaram a queixar-se de uma sede aguda. Esvaziaram seus cantis e começaram a disputar uns pela água dos outros, primeiro com argumentos, depois com violência. O eremita jogou seu cantil para eles e, enquanto engalfinhavam-se pela água, fugiu e escondeu-se a uma distância segura. Ele ouviu tiros, gritos; tiros novamente. Mesmo com o silêncio total, aguardou quase até o anoitecer para verificar os fatos. Deparou-se com um horror sem precedentes. O pároco, um policial e o cavalo estavam mortos. O segundo policial rastejava-se alvejado por tiros nas pernas, ele revirava as entranhas do cavalo, sugando-lhe o sangue freneticamente. As vísceras dos outros cadáveres estavam espalhadas pela trilha, quase sem sangue, praticamente secas. O eremita aproximou-se com cautela para não ser ouvido e matou o policial com uma coronhada de fuzil na cabeça.
Todos os cadáveres couberam na fenda junto ao limoeiro. O eremita terminou de sepultá-los cobrindo-os com terra. A cruz de madeira, que pertencia ao padre forasteiro, ele usou para demarcar aquele túmulo coletivo. Ateou fogo ao limoeiro, fez uma prece para que o mesmo morresse e partiu para nunca mais voltar.

Dragomir Kephas 
Colaborador da revista Lodo, desde 1958.

Francisco Gusso
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: franciscogussoarts.blogspot.com 

26 de jul. de 2012

Uma Última Espairecida

Arte: Bruno Oliveira
Conto: Eduardo Capistrano



Ataulfo aguardava. “O filho do meu pai não esmorece”. Com seu chapéu preferido na cabeça, resmungava sozinho enquanto cofiava o frondoso bigode, sentado na rede, na varanda de casa. Os pés não tocavam o chão, apenas as solas dos chinelos, arrastadas pra frente, pra trás, pra frente, pra trás.
Não era papudo. Não era “ligeiro”. Não era, enfim, qualquer uma das coisas que o Zé Pitoco estava falando dele. “Desgranhado filho de cachorro com bode”.
A Diocleciana falou que ele é quem devia ter começado. “Como sempre”, ela gralhou, quando ainda achava que era só uma briga de boteco. Passa um tempo na vida de um homem sem briga, sem sangue, e o povo pensa que ele murchou. Até a mulher de um homem pensa que ele não é de nada e acha de zombar dele. Mas o que se pode fazer? Um homem não caça mais. Não volta com sangue e carne nas mãos. Um homem não precisa mais matar pra conseguir uma terra ou uma casa. O homem de bem trabalha e consegue tudo o que precisa. Aí vem outro e pensa que ele é um fracote. “Meu pai não teve filho fracote”.
A mulher não gralhava mais quando tocou ela de casa. Chorava e gritava, enquanto Ataulfo enfiava ela e os filhos na picape do cunhado. Agora não precisava provar nada, não é? “Entra no carro. Fica quieta”. E pro primogênito: “você é o homem da família agora”. Sapecou um beijo na testa dele. Era o primeiro beijo que dava no filho. O guri tinha acabado de fazer dez anos.
Pela terceira vez pôs na boca a garrafa vazia de pinga. A bolota de líquido acumulado no fundo virou, de novo, uma gota que escorreu pelas paredes da garrafa até seus lábios. Largou a garrafa dentro da rede, com as outras duas também vazias. A visão estava agradavelmente turva. O corpo, confortavelmente amortecido.
Divisou o Zé Pitoco quando o chapéu despontou na subida da estrada que chegava nas suas terras. Aí apareceu a cabeçorra sobre o corpo magro, com as orelhas de abano e aquela cara de rato com os olhos apertados, o bigodinho ralo e os dentes tortos pra fora naquele sorriso estúpido e zombeteiro que não saía do rosto. Vinha andando do seu jeito desengonçado. Parecia que mal aguentava com o peso do corpo, quanto mais da carga que trazia.
Parou na porteira. Lá na estrada, à distância, estavam os outros. O cunhado de Ataulfo e mais alguns. Não estavam ali pra interferir. Só pra ver e contar depois.
O Zé Pitoco abriu a porteira já cuspindo xingamentos. Ataulfo se ergueu da rede, a espingarda nas mãos, devolvendo impropérios. Não precisavam ouvir as ofensas que estavam trocando. Nem conseguiriam, se quisessem. Ambos tinham plena certeza da opinião que tinham um do outro. O Zé Pitoco mostrou o peito com a mão, gritou, apontou as testemunhas, chamou Ataulfo de covarde. Na outra trazia um facão. “Meu pai não criou covarde”.
Ataulfo deixou a espingarda e foi pra cima do Zé com a própria faca. Menor, mais rápida. O rato era traiçoeiro. O tiro da garrucha dele pegou na coxa de Ataulfo. Estava tão bêbado quanto ele. Ataulfo deixou a faca nos buchos do Zé, mas o magro pareceu não sentir. Seu facão entrou no braço de Ataulfo como se fosse a cana que costumava cortar. Ataulfo colheu com a mão ilesa o pescoço do Zé e procurou com a mão ferida uma arma. Achou as garrafas vazias na rede, quebrou uma na cabeça do Zé sem largá-lo, empurrou-o sobre a rede. Enfiou a garrafa quebrada uma, duas, três vezes na cara dele, enquanto enrolava as cordas da rede ao redor do pescoço do Pitoco.
A cara de rato, ensanguentada, mudou de cor. Ataulfo somou o peso do próprio corpo ao do Zé. Ele se debateu, se contorceu, mas logo parou de se mexer. O olho que não foi vazado pela garrafa quebrada parecia querer pular pra fora da órbita, como a língua pra fora da boca. Só então Ataulfo desvencilhou-se dele, direto pro chão. Agarrou o cabo do facão do Zé. Estava enterrado no meio do próprio peito. O cunhado e os outros chegaram bem nesse momento. Ouviram as suas últimas palavras, cuspidas com sangue, depois dele tirar o facão das tripas.
“O pai do meu filho não é covarde.”

Eduardo Capistrano

Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011).
Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com

Bruno Oliveira
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: www.flickr.com/oitoart.

25 de jul. de 2012

A casa dos segredos

Ilustração: Theo Szczepanski
Conto: Rafael Pesce


Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec Vum Vum Vum Tec...o barulho do velho ventilador o despertou. O quarto era mal iluminado, com apenas uma cama de solteiro coberta pelo pó. Ao lado, uma pequena cômoda com um telefone antigo. Uma televisão 14 polegadas, com alguns botões faltando, completava a decoração. Na porta, um chaveiro escrito HOTEL MIRANTE entregava o lugar em que acordara. Como ele havia chegado ali ainda era uma incógnita. No corpo, uma camisa de cetim, uma calça jeans desbotada e um relógio quebrado. No chão, um par de sapatos com as meias ainda dentro. Levantou da cama, ainda um pouco zonzo. Não fazia a mínima ideia de como chegara ali. Lembrava apenas do seu nome, Victor. Profissão? Família? Namorada? Nada, nada aparecia em sua mente, apenas um grande vazio preenchido por uma sensação de estranheza. Colocou as meias e o sapato, abotoou a camisa e ao se levantar sentiu um leve peso em um dos bolsos. Puxou um cartão. Nele estava escrito: NIX – CASA DE PENHORES – Rua Imperador de Jade, 14. Era uma pista, a única que tinha.

A cidade era desconhecida. Parecia grande, já que prédios pipocavam por todos os lados. Entrou em uma cabine telefônica em busca de uma lista. Procurou pelo nome da rua, mas ela não constava em nenhuma das 500 páginas. Olhou novamente o cartão para conferir se não havia se equivocado. Mas era isso mesmo, Rua Imperador de Jade, inexistente aos seus olhos. Caminhou por mais algumas quadras. Seguiu o caminho onde o cheiro era pior, parecia lógico para ele. Acabou em uma pequena travessa. Lá, mulheres dos mais diferentes tipos vendiam o corpo. Abordou algumas delas e perguntou se sabiam da existência da rua misteriosa. Todas foram unânimes em dizer que não, com uma convicção assustadora. Estava sem rumo. Resolveu sair daquele lugar, mas foi interrompido por um toque no ombro. A responsável foi Labelle, uma prostituta ruiva e obesa, que calmamente sussurrou nos ouvidos de Victor:

- Meu amor, todo mundo que vive no submundo sabe da existência dessa rua. Mas chegar até lá é algo que muitos têm medo... medo até de pensar. Querido, você me parece alguém que não vai desistir até encontrar o que procura. Por isso, pegue o metrô até a estação Policarpo, vá em direção à saída sul e ande três quadras. Lá estará o bar Potus, um lugar onde respostas podem ser encontradas...

Labelle piscou com o olho direito, deu um tapa de leve na bunda do rapaz e colocou algumas notas e moedas no bolso da camisa de Victor. O metrô demorou 15 minutos para chegar até o destino. A caminhada até o bar foi apressada. O estabelecimento era pequeno, podia passar despercebido pelos olhos mais desatentos. Na entrada, um letreiro em néon, mas apenas a letra P ainda exibia alguma luz. Desceu uma pequena escada que o levou até o leão de chácara, mal-encarado. Entrou sem pestanejar sob olhares desconfiados. No interior, uma dezena de pessoas se dividia entre o balcão e as poucas mesas. Ainda era cedo para um movimento maior. No palco, uma banda de barbados cantava uma versão arrastada de “Woman From Tokyo”, do Deep Purple. Sentou no balcão e pediu o drink mais barato do menu. O barman, um velho carrancudo com tatuagem do Charles Bronson no braço direito, o serviu. Com o copo cheio, Victor foi direto ao ponto: “Rua Imperador de Jade, 14”. O braço tatuado apontou para uma mesa localizada no canto mais obscuro do bar. Lá estava sentando um anão. Ele exibia traços asiáticos e vestia um terno e chapéu que pareciam saídos da Chicago dos anos 20. Cheng era seu nome. Duas loiras robustas, em vestidos mínimos, o acompanhavam. Compenetrado, Victor aproximou-se da mesa. O anão notou a expressão séria que o encarava e mandou as duas companheiras se afastarem.

- Rua Imperador de Jade, 14. O que você sabe?
- Calma garoto, calma. Informações como essa tem um preço. Você acha que é barato pagar por belezuras como aquelas duas? O que você tem a me oferecer hein garoto?!
- Isso!!!!!!

Victor desferiu um soco tão rápido que pegou Cheng sem nenhuma reação. O anão foi derrubado da cadeira, batendo a cabeça no chão. A confusão despertou a ira dos frequentadores do bar, que partiram para cima do brigão. Um a um foram caindo após sequências de chutes, socos, cabeçadas e voadoras. Com todos já sem capacidade de reação, Victor voltou a interrogar o charlatão:

- A rua, agora! Você tem três segundos para me dizer antes que sua cara fique tão feia que nenhum dinheiro no mundo vai fazer uma puta te aceitar...
- Calma, calma...calma garoto. Eu digo! Eu digo! Essa rua fica em um lugar onde ninguém vê, pelo menos não claramente. Vá até o centro da cidade, em direção à praça José Bonifácio. Procure pela Lavanderia Yin-yang, você encontrará o que procura lá... agora vá, me deixe em paz, por favor...

Victor surrupiou o dinheiro da carteira do anão e saiu do bar. Pegou um táxi e rumou até o centro da cidade. Desceu perto de um calçadão e começou a procurar pelo estabelecimento. Não demorou muito e encontrou a lavanderia. Ela ficava em um local pouco visível, em uma rua secundária. Victor parou em frente à porta. Nenhuma luz aparente. Tentou a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou no lugar e...

...lá dentro não havia máquinas de lavar roupa, nem secadoras, nada. A entrada dava acesso à outra rua. Imperador de Jade, apontava a placa. Lateralmente vislumbrou mais de uma dezena de portas. Procurou pelo número 14 e lá estava, NIX – CASA DE PENHORES. A porta era de madeira, antiga, com alguns buracos denunciando a ação do tempo. Entrou sem bater. Caminhou por um pequeno corredor até chegar ao que parecia ser uma recepção. No balcão, uma senhora idosa, certamente com mais de 70 anos. Ao fitar Victor, os olhos dela arregalaram-se. Começou a tremer e a gritar: “Meiying, Meiying, Meiying”. De uma ante-sala saiu uma mulher, mais jovem. Igualmente assustada, balbuciou uma indagação:

- Não...n-n-não funcionou senhor? O que você faz aqui? – As palavras saiam tremidas, quase incompletas.
- Como assim? Do que você está falando?
- Você não lembra? – a voz agora aparentava uma maior calma.
- Acordei em uma pocilga, sem lembrar de nada, apenas com este cartão no meu bolso. Que diabos aconteceu comigo?
- Senhor...é melhor me acompanhar.

Victor dirigiu-se com as duas mulheres até uma pequena sala. Lá, um velho ancião estava sentado no chão com os olhos fechados, entoando cânticos em uma língua estranha. Ao lado, um pequeno fogão improvisado esquentava uma chaleira com água. Ao perceber movimento, o anfitrião levantou as pálpebras.

- Hum...você voltou! O trabalho não funcionou?
- Ele não sabe o que aconteceu, está desnorteado. Procura respostas, urgentes. Parece que não vai desistir até as encontrar – respondeu a mais jovem das mulheres.
- Hum...e você meu jovem, tem certeza que quer descobrir o porquê de tudo?
- Vamos velho, me fale logo o que aconteceu comigo!
- Bem, como você já deve ter percebido essa não é uma Casa de Penhores. De segredos, talvez. O conhecimento da existência desse lugar é privilégio para poucos. Mas bem, o que eu faço aqui meu jovem, é uma arte há muito tempo esquecida, uma arte que é passada de geração a geração. Neste recinto, os segredos das pessoas são guardados, muitas vezes até esquecidos. O fruto desse abandono é o alimento da nossa casa.

Victor não se sentia completo desde que acordara. O vazio interior crescia assustadoramente a cada segundo. Transtornado e sem ter certeza do que estava pedindo, deixou as palavras fluírem:

- Você tirou um segredo. Pode colocá-lo de volta?
- Hum....tem certeza que é isso que quer?
- Ou é isso ou é o fim da linha para mim, sinto um abismo se abrindo dentro da minha cabeça.
- Tudo bem meu jovem, sente-se aqui.

Victor acocorou-se ao lado do ancião. A água que estava esquentando, a essa altura já estava fervida. O velho pegou uma caneca e colocou algumas ervas dentro. Sovou todo conteúdo e misturou com o líquido.

- Agora beba, isso é tudo que precisa fazer.

Tremedeiras, suor excessivo, barulhos estranhos...tudo começou a girar. Victor pensou que estava morrendo, mas a visão que teve era pior que a morte. Tudo estava preto e branco. Um a um seus demônios interiores foram aparecendo. Vidas passadas, há muitos séculos esquecidas, foram desfilando na frente de seus olhos. Em meio a um assombroso passado, reis, rainhas, bruxas e criaturas da noite ganhavam contornos sanguinários. O protagonismo da mão que empunhava os instrumentos da morte era sempre de Victor. As imagens percorreram o caminho do tempo até chegarem à década atual. O panorama continuava o mesmo, apenas com uma gama diferente de vítimas. Pouco mais de 20 minutos de um tormento quase insuportável se passou. Victor levantou-se, agora com a convicção de quem realmente era, e saiu daquele lugar. Três corpos foram deixados para trás, com a certeza de que certos segredos não devem ser nunca esquecidos.

Rafael Pesce 
Nasceu em 1985 na cidade de Três Passos, interior do Rio Grande do Sul. Mudou-se para Porto Alegre em 2003, onde se formou em Jornalismo pela PUC-RS e mora até hoje. Em sua estante de livros Nick Hornby e J.R.R Tolkien brigam constantemente pelo maior espaço, mas agora ganharam a concorrência voraz de George R.R Martin. Devoto do gremismo, não dispensa um café ou um chimarrão bem quente.  
Seus contos podem ser lidos em: http://contosdefleming.blogspot.com

Theo Szczepanski
Suas ideias e referências podem ser visualizadas no tumblr: http://opustheo.com e seu portfolio online em: http://cargocollective.com/opustheo

24 de jul. de 2012

Sabor Alagoano

Ilustração: Zansky
Conto: Jean Michel Silva



            Era um dia normal na pacata cidade de Doutor Irineu. Um dia típico de verão alagoano, com temperatura muito alta beirando a 40 graus. A economia do vilarejo girava em torno do pequeno comércio que ali existia. A terra era seca, o gado morria, faltava água e às vezes até mesmo comida. As pessoas se viravam da maneira como dava: procuravam por bicos nas cidades vizinhas, plantavam alguma coisa em seus quintais e trocavam entre si os alimentos que nasciam, sofridos, da terra árida e desprovida de nutrientes.

            Apesar de toda essa situação, os habitantes do local procuravam juntar economias para gastarem na famosa, e única, sorveteria da cidade: a Sorveteria da Ivete. Lá, era o ponto de encontro de famílias inteiras durante as tardes quentes de domingo. Ninguém nunca havia conhecido a moça que dava nome ao estabelecimento. Os moradores mais antigos da cidade diziam que Ivete foi uma personalidade muito importante da região e que, inclusive, foi uma espécie de líder política. Fundou escolas, abriu poços e negociava com o governo local para garantir melhores condições de vida aos moradores. Conta a lenda que ela desapareceu da cidade assim que algumas luzes foram avistadas sobrevoando a região. Desde então, o caos e a miséria se abateram sobre a cidade.

            A ignorância de um povo mal instruído e o medo em relação as famosas luzes fez com que o misterioso desaparecimento de Ivete virasse assunto proibido. Contam os idosos da cidade que no dia em que a luminosidade tomou conta do lugar, uma voz autoritária invadiu as casas e chegou ao ouvidos de moradores dizendo: “Esqueçam o que aqui aconteceu. Enterrem esta história”. Desde então, nada foi dito ou falado. Ou melhor, nada foi dito ou falado até a chegada do jovem Klauss a cidade misteriosa.

   Klauss estudava química e chegou até a cidade devido ao sucesso dos Sorvetes de Ivete. O mais estranho é que todos os alagoanos sabiam a respeito do sabor incomparável da sobremesa gelada, mas nem desconfiavam da lenda por trás da sua história.

&bsp; Não por acaso, chegou a cidade no mesmo domingo ensolarado. Alugou um quarto de hotel e deixou seus equipamentos sobre a escrivaninha. Queria encontrar o segredo da fórmula tão saborosa para, em seguida, revendê-la na capital.

            Klaus dirigiu-se à sorveteria. Estava disposto a descobrir o que Ivete escondeu tão bem escondido que somente seu filho, atual dono do negócio, sabia. Ao chegar lá ficou surpreso. O filho de Ivete já o aguardava.

-         Como assim?
-         Quer conhecer a fómula dos meus sorvetes, não é isso?
-         Não, imagine, só vim experimentar e...
-         Não se preocupe. Posso te mostrar.
-         Simples assim?
-         Simples assim. Me acompanhe.

            Os dois desceram até o estoque do lugar, uma espécie de depósito. Klauss, a cada passo, ficava mais nervoso. Estava achando tudo fácil demais. Sentiu certo pavor. O filho de Ivete percebeu.

-         Acalme-se Klauss. Não veio até aqui por isso? Vou lhe mostrar.

            A cada passo, mais horrorizado ia ficando. Desceram escadas infinitas em forma de caracol até que deram de frente com uma porta grande de ferro. Uma luz azul escapava pelas frestas. Klauss ficava cada vez mais tenso. Suava frio.

-         Não tenha medo.
            Hesitou, num primeiro momento, em dar o passo a frente, mas uma força estranha o fez caminhar. O filho de Ivete movimentou a mão esquerda rapidamente, fazendo com que a porta fosse aberta.

            A princípio, nada muito chocante. Klauss achava que o nervosismo o fez sentir e imaginar coisas estranhas. Viu uma grande, ou melhor, enorme panela sobre uma espécie de fogo azul que cozinhava algo fazendo exalar um cheiro terrível. Ao se aproximar mais, pode ver uma mulher que esticava a mão implorando por socorro. Era uma senhora, metade pessoa, metade esqueleto. Alguns ossos estavam a mostra. Seus músculos levavam uma coloração roxa. Era possível ver pedaços de seu corpo boiando sob água que, apesar de um azul exuberante, oscilava entre temperaturas muito altas e muito baixas. A mulher se desintegrava aos poucos, mas ainda tinha forças pra falar.

-         Me ajude seu moço. Sou Ivete. Esses bichos....

            Enquanto tentava complear a frase, seu maxilar caiu em meio a água.

Klauss estava apavorado. Pensou em sair correndo, mas sabia que seria tarde de mais.

-         Essa é Ivete? O que fizeram com ela? Quem..o que você... é?

            Antes que pudesse tomar qualquer atitude, o filho de Ivete riscou uma cruz no ar com seu dedo, desfazendo Klauss em quatro partes.  Enquanto o corpo dividido caía lentamente, Klauss ainda conseguiu ouvir:

-         Sou filho de Ivete. E você, curioso demais.

 Zansky
Outros trabalhos: www.zansky.com.br

Jean Michel Silva
Site pessoal: about.me/jeeanmichel

20 de jul. de 2012

Abra

Ilustração: Danilo Oliveira
Conto: Mel Ferreira




Mel Ferreira
Publica outros contos e narrativas em seu blog: http://eternoseefemeros.wordpress.com  

Danilo Oliveira
28 anos, trabalha como artista visual e editor. Co-fundador do coletivo Base-V. 
Seus trabalhos podem ser visualizados no site www.flickr.com/danilobasev e participa também do coletivo http://multiplogaleria.com.

16 de jul. de 2012

Desgraçada Mente

Ilustração: Pedro Giongo
Conto: M.D. Amado
 
Do tempo em que o tempo não fazia diferença e o relógio era um luxo do qual poucos podiam usufruir. Em uma comunidade perdida, esquecida... no tempo.
Filha de dois irmãos. O pai demente, a mãe ninfomaníaca. Expulsos da família por se conhecerem biblicamente, seguiram suas vidas desgraçadas, abraçadas a esperanças de dias melhores, ou quem sabe, normais. Ela, deficiente. Nascera sem as pernas e sem o braço direito. Oh, vida desgraçada!
E já em sua adolescência, ganhou duas irmãs... ou seria uma? Mais uma vez o incesto que não deu certo. Oh, fertilidade desgraçada!
Siamesas.
E ela, que não tinha pernas nem braço direito, ganhara uma(s) irmã(s).
Oh, irmã(s) desgraçada(s)!
Do tempo em que os homens da ciência tinham sede e fome de conhecimento a qualquer custo. Do tempo, assim como em qualquer outro, em que notícia ruim e desgraça alheia corriam a galope, como um raio, como um piscar de olhos igual esse que você vai dar agora... piscou?
E ela, sem pernas, se arrastou até a porta. Quem bate? Alguém que veio para ajudar. E como se ajuda alguém desgraçadamente incapaz?
Ele, que poderia se chamar Victor, mas não chamava, prometeu-lhe o mundo e um outro braço. Quem sabe até um par de pernas. Pediu a ela que não desistisse da vida, pois no momento oportuno voltaria com o seu novo mundo.
O que mais ela poderia fazer, senão esperar? Se matar era uma opção, mas não o fez. Oh, curiosidade desgraçada! Como seria esse novo mundo em que ela teria duas pernas e dois braços?
E nove anos se passaram, de um tempo em que mal se media. Ela já nem se lembrava das fuças do Doutor, quando as siamesas passaram batendo cabeça para atender a porta. Quem bate? Alguém que veio para juntar. E como diabos se junta algo que já se despedaçou no longe de Deus?
Ainda em tempo, diga-se de passagem, o demente do pai/tio morrera no ano anterior. A mãe/tia foi embora com um saltimbanco. Desgraçada! Mas pelo menos ele não era parente... não muito próximo.
Do tempo em que Mary Shelley ainda nem tinha saído das fraldas, o Doutor, que não era Victor veio cumprir sua promessa. Trouxe-lhes um mundo novo! E que mundo mais desgraçado poderia ser dado àquelas irmãs?
Siamesas... triamesas?
E ela costurada. Acordou desorientada, orientada apenas pelos gemidos em seu ouvido. Elas.
Costura bem feita, se considerarmos a época.
Exausto, jogado na cadeira, o nosso Victor que nem era doutor, admirava sua experiência. Admirava... Desfez-se da empolgação inicial. Chorou... Oh, ideia desgraçada! Pernas pequenas demais.
Ao lado da cama, um braço pequenino. Na cama, a aberração multiplicada.
Ela... elas.
Costuradas.
Ela agora tinha um braço direito e três cabeças.
Elas agora tinham um corpo de mulher, ou parte dele. Seios fartos e a inocência perdida.
Oh, Victor desgraçado!
Do tempo em que, como hoje, aquele que errava ia embora, como se nada tivesse acontecido. O mundo novo ele deixou lá, para quem quisesse explorar.
E mais um ano se foi. Não que elas tivessem contado os dias, mas o tempo passou mesmo quando o tempo não se passava. E lá estavam elas, irmãs, siamesas-triamesas, filhas de dois irmãos, incestos que não deram certo, abandonadas e lésbicas.
E vocês nem imaginam a dificuldade de locomoção.
Oh, infâmia desgraçada!

Pedro Giongo  
Seus trabalhos podem ser visualizados no site: http://estudiotijucas.com

M.D. Amado
Conheça seu livros de contos, Aos Olhos da Morte: www.estronho.com.br/olhos

13 de jul. de 2012

Cemitério Hamasaki

Ilustração: Frede Tizzot
Conto: Florestano Boaventura


Mês passado recebi uma visita inusitada. Suri Hamasaki, da fábrica de brinquedos Tomo-no-kai, apareceu para tomar um café. Sempre a encontro nos jantares e bingos do Clube Nikkei, ponto de encontro da colônia japonesa no bairro.  Aliás, como é sortuda! Na última vez, levou um chuveiro elétrico e um jogo de toalhas da Marvel.  Estava louco pela do Hulk, mas eu, em bingo, não ganho nem pano de prato.
Hamasaki é descendente dos primeiros imigrantes isseis e nisseis que vieram morar no Uberaba. Herdou a fábrica, que inicialmente trabalhava apenas com brinquedos de bamboo e carrinhos de madeira. Hoje em dia são os bonecos infláveis da Jessica Biel que fazem mais sucesso.
Suri me trouxe de presente um pacote de bolinhos de feijão Azuki – iguarias que eu adoro e que retribui com vigorante café forte. Quem faz os bolinhos é outra amiga nossa, Mitiko Sakamori, dona de uma floricultura de plantas carnívoras na Salgado Filho.
Minha amiga então falou que o cemiteriozinho particular da tradicional família Hamasaki estava totalmente entregue a bandidagem e me perguntou se eu não poderia dar uma mão – aliás uma pata, para assustar os maloqueiros que andavam saqueando os túmulos ou se escondendo  no matagal em volta, após furtos nas imediações. Imaginou que se eu passasse algumas noites de lua cheia por lá, dando uns uivos, assustaria os salteadores. Na hora eu pensei, é claro, no banquete de carne fresca que estava me ofertando. Mas não comentei isso e, para manter a descrição, apenas aceitei solicitamente. Sempre fui muito bem tratado no bairro e desenvolvi uma amizade muito legal com os japoneses que moram aqui.
Na noite de lua cheia seguinte, passei a noite no cemitério. Demorou para aparecer alguém, mas eu estava bem acompanhado de alguns deliciosos charutos cubanos e de um radinho a pilha para ouvir os lances do jogo do Atlético.
O aperitivo foi um ladrãozinho de vasos. Pena que quando decepei a cabeça dele, as peças se quebraram. Vacilo total. Deviam estar ali há uns cem anos pelo menos. Para não levantar a lebre, levei os pedaços junto com os ossos num saco, pra casa. Vai que ainda dava pra colar com Super Bonder...
Depois apareceram outros larápios – se gabando de terem roubado rádios de carros e mais tarde também uns góticos profanadores de túmulos. Me fartei! Foi tanta carne que acabei levando as sobras pra casa. Lotou o meu freezer. Tenho comida para mais de mês, agora.
Daí eu e a Suri espalhamos pelo bairro o boato que uma fera demoníaca estava assassinando as pessoas no cemitério. Fizemos até um fanzine em xerox. Dissemos que tratava-se de um lobisomem oriental, defendendo os antepassados da família.
O sobrinho dela, Frede, nos ajudou com os cartazes. Desenhou a face aproximada da criatura, com o cemitério de fundo. Ficou bem legal o desenho! O piá leva jeito, acho que vou até convidá-lo para ilustrar uns contos na Lodo.
Criamos um nome, que eu nem lembro qual era, em japonês e distribuímos por vários pontos do Uberaba. Pelos botecos, panificadoras e principalmente nos clubes dançantes.
Parece que a ação funcionou, ela me disse hoje. Mas o problema é que agora, a paz do cemitério está sendo incomodada por cientistas e jornalistas do programa “Caçadores de monstros” do History Channel. Que saco! A gente se livra de um problema e aparece outro.

Frede Marés Tizzot
Formado em História e Direito, abandonou o mundo acadêmico para fundar a Editora e Livraria Arte e Letra, onde trabalha como ilustrador, capista, diagramador, editor, revisor, tradutor...

Florestano Boaventura
Editor de uma revista de cordel, com temática horror, chamada LODO. A publicação circula  pelos becos de Curitiba desde 1948, e foi relançada junto com a LAMA nº 2 em 2011.
Alguns contos podem lidos em: www.revistalodo.blogspot.com.br.

11 de jul. de 2012

Onna Bugeisha

Fotografia: João Castelo Branco*
Texto: Eduardo Capistrano
*Estrelando: Raquel Deliberali

produção: Fabiano Vianna /  Digão Duarte  / Nina Giusti Galiano








Tinha 12 anos quando ganhou sua primeira espada. Era um tanto — “uma katana do seu tamanho”, disse o tio. A arma não tinha fio, estava velha e maltratada, mas ela a adorava. Na versão da estória que criou, a lâmina tinha passado de mãos em mãos, desde um samurai desonrado que se tornou um dos piores bandidos das estradas do Japão, até ser tirada por soldados Aliados das tripas de um tenente que cometeu seppuku nas trincheiras da Manchúria.
Foi apenas a primeira de muitas. Tornou-se aficcionada por espadas japonesas. Adquiriu outros tantos tantos, além de kodachis, wakizashis, tachis, katanas e nodachis. Colecionava também shinais e bokkens. Montava daishos, os pares de katanas e wakizashis, em suportes por toda a casa. Sua coleção de tsubas, os guarda-mãos das espadas, ocupava uma parede inteira. Tinha redondos e quadrados, funcionais e ornamentais, antigos e novos, réplicas baratas e preciosidades em ouro.
A fascinação contaminou toda a sua vida. Só namorava descendentes de japoneses. Devorava livros e mangás sobre o Japão feudal, assistiu a uma infinidade de animês e filmes que tivessem as armas. Aos 16 anos concluiu que “O Livro dos Cinco Anéis” era o caminho de sua vida. Ela acreditava, realmente, que Musashi, isolado no fim da vida em uma caverna isolada, escrevia aquelas palavras para ela, 350 anos depois.
Dedicou-se a aprender japonês apenas para ler o Go Rin No Sho no original. Começou a frequentar cursos de kendo procurando quem estivesse disposto a lhe ensinar a arte mais tradicional do kenjutsu. Nessa época, fez sua primeira viagem para o Japão. Na terceira viagem, conheceu Kenji. Apaixonou-se perdidamente.
Formou-se e fez pós-graduação em História do Japão. Era piada para ela, que se sentia não uma estudiosa, mas uma habitante daquela época e lugar. A graduação quase coincidiu com a chegada de sua o-yoroi, uma armadura tradicional samurai, um presente de Kenji. Era desengonçada e nem um pouco apropriada para o uso. Mas ela não a usaria. Quando saía às noites, levava apenas seu daisho preferido, sobre um colete de kevlar. Mas também levava seu primeiro tanto. Adulta, já sabia que era uma réplica barata comprada por seu tio em algum brechó. Mas não fazia diferença quando ela o enfiava nas tripas da escória que cometia o erro de cruzar seu caminho.

João Castelo Branco
Blog: 
http://casadojoao.blogspot.com

Eduardo Capistrano
Nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1980. Contista desde 2002, é autor de "Histórias Estranhas" (2007) e "A Quarta Dimensão" (2011).
Saiba mais em http://edcapistrano.blogspot.com

10 de jul. de 2012

Eucaristia

Ilustração: Theo Szczepanski
Conto: Luiz Bras




(mini-romance em vinte e um capítulos)


1

Eu não mastigo raiz de carvalho aquático, você não coleciona selos da Bulgária, ele não tolera crianças de olhos vermelhos, nós não usamos tatuagens mal-assombradas, vocês não sabem esquiar ladeira acima, eles não queimam incenso no oitavo dia da semana.


2

No reunimos no inverno pra beber e contar histórias. Nos reunimos na primavera pra colher lírios e crisântemos. Nos reunimos no verão pra forjar espadas e machados. Nos reunimos no outono pra caçar e honrar os deuses.


3

Jamais tiramos o capuz. Jamais. O negro capuz que, assim supomos, protege de nosso rosto hediondo — uns dizem: sublime — a fauna e a flora circundante. Se hediondo ou sublime, ninguém sabe. Nunca tiramos o capuz.


4

Caçamos tudo o que tem duas pernas, dois braços e doze metros de altura. Os gigantes sonolentos que caem do céu são a maior razão de nossa existência.


5

Eu corro através do desfiladeiro, você prepara o laço, ele distribui as lanças, nós atraímos o gigante, vocês desdobram a rede, eles aprisionam a presa.


6

Conduzimos o gigante até a praça da aldeia. Ele é amplo e fleumático, forte e afetuoso. Poderia nos esmagar facilmente, mas não tolera a violência, não suporta a morte. Por isso foi expulso do céu. Pra fugir da crueldade e do sofrimento que cedo ou tarde esmigalhariam seu esqueleto.


7

Eu abraço a felicidade, você abraça a tristeza, ele chama os velhos e as crianças, nós queremos experimentar novamente o milagre da vida, vocês fazem a presa sentar no meio da praça, eles gritam para o gigante: cante alto, bem alto.


8

Mas o gigante não canta. Não tem ânimo pra cantar.


9

Eu puxo a espada e alfineto a coxa de carne e osso do prisioneiro. Você puxa a espada e alfineta a coxa de carne e osso do prisioneiro. Ele puxa a espada e alfineta a coxa de carne e osso do prisioneiro. Nós rogamos: cante alto, bem alto. Vocês suplicam: cante alto, bem alto. Eles imploram: cante alto, bem alto.

10

O gigante choraminga feito uma criança pequena. Suas asinhas de morcego batem, miudinhas, impotentes. Sua boca abre um pouquinho. Ele começa a cantar.


11

Mas o balbucio arruinado que sai de sua boca parece mais o lamento esfolado de um gato morrendo.


12

Pare, eu rogo. Pare já, você suplica. Pare agora, ele implora. Queremos a canção da outra boca, nós dizemos. É, seu estúpido, da boca secreta, vocês dizem. A canção sagrada, eles dizem.


13

Cem lanças espetam sua coxa de carne e osso e sua coxa mecânica. Ele concorda com um gemido e um aceno de cabeça. Cem lanças param de espetar sua coxa de carne e osso e sua coxa mecânica. Ele aceita o lençol que lhe oferecemos pra assoar o nariz, enxugar a barba.


14

O gigante respira fundo, se concentra. Então a boca pequena se fecha e a grande boca, na altura do estômago, começa a cantar a canção sagrada.


15

A aldeia inteira entra em transe. O fogo de todas as fogueiras atravessa a multidão. Por muito tempo: dois segundos. Depois vem a água de todos os rios, de todos os mares. Uma onda imensa de sabores, cheiros e texturas — cinco segundos — desliga do resto do mundo os pequenos caçadores. Um instante de silêncio, verde silêncio, vitrificada quietude, paralisa os pássaros no céu. Respiração presa. Mais dez segundos. Mãos saboreiam seios, nádegas. Dedos acariciam vulvas, falos. Línguas, essas não fazem nada, pobrezinhas. Nada além de saracotear sob o capuz.


16

A canção escorre pra fora do gigante como lava. De sua garganta, passando pela boca, saem estrelas anãs e buracos negros. Escapam a saudade da infância, o medo de lugares apertados e escuros. Muitas noites quentes e paradas jorram das narinas, dos pulmões. É outono, mas também é inverno, primavera e verão. Bem do fundo do gigante brotam criaturas cor-de-rosa, minam futuros e passados. Os deuses incandescentes que fluem com a lava nós honramos copulando, fabricando a vida.


17

Nós copulamos e copulamos e copulamos e assim honramos os deuses incandescentes que fluem com a lava.


18

Extenuado, o gigante emudece. Extenuados, os corpos se separam. O gozo chega ao fim. O mundo volta ao normal.


19

Eu choro e agradeço. Você abraça a coxa ferida do gigante. Ele convida a multidão a louvar o prisioneiro. Nós louvamos. Vocês pedem a ele que deite. Eles trazem as bacias, os jarros, a serra e os machados sagrados.


20

Esquartejamos o gigante. Sem pressa, começando pelos membros inferiores. Nada deve ser desperdiçado. A cerimônia é lenta e dolorosa. O prisioneiro choraminga, mas não tenta escapar.


21

Antes de serrar seu pescoço, sussurramos em seu ouvido a última despedida. Rápido, rápido, o inverno se aproxima. A aldeia tem fome.

Theo Szczepanski
Suas ideias e referências podem ser visualizadas no tumblr: http://opustheo.com e seu portfolio online em: http://cargocollective.com/opustheo

Luiz Bras 
Nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. Sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Acredita em telepatia e universos paralelos.
Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato:
 luizbras.wordpress.com